Meridionais é um livro habitado de memórias. A memória que é uma arte: a do “canto obstinado das cigarras”, do “prumo branco das colunas” e do “fruto ainda verde dos ciprestes ” (p. 7). É este entendimento da memória – da mnemósine – que nos remete desde o início para uma estética aprumada, que foge ao neo-barroquismo que invade os escaparates dos supermercados de livros, e procura uma verticalidade que se afirma pelo prumo e aprumo, pelas colunas e pelos ciprestes.
Os textos são breves, densos, condensados, volumes gnómicos, muitas vezes aforísticos (a lembrar um outro título do autor, Abrasivas). Por vezes aproximam-se da aguarela pela sua aquosidade e leveza, em outros momentos são incisivas legendas. Todos eles são porosos, dados à respiração nítida e a um líquido silêncio, inundado de uma memória de um mar liso, muito azul e de uma planície, paradoxalmente, vertical.
O poema inaugural de Meridionais apresenta-se com uma reconfortante certeza:
“Afinal
o mundo
tem um centro” (p.7)
Esse centro é Delfos, o cordão umbilical dos poetas. Não é preciso procurar mais. Delfos, reverenciado por todo o mundo grego como o umbigo do universo, é o começo, a génese, o centro. É também em Delfos, na água bebida na “Fonte Castalia” que reside a graça poética. Não, seguramente, a “graça” / inspiração de Mésseder: afinal quem bebe “a água que jorra do umbigo da terra” são os outros – aqueles que buscam “um grão de juventude” (p. 8) – não ele. O desejo de distanciamento desses outros que necessitam dessa “água” é mais do que vincado: são eles – esses que a bebem – não ele.
O silêncio de Mésseder não é uma metáfora gasta, mas sinestésico que se vê e se respira. É esse silêncio que se encontra em Epidauro, no teatro. Este anfiteatro reproduzia de forma audível, nas últimas bancadas, o som de um alfinete atirado ao chão. No entanto, é mais fácil hoje ouvir hoje um alfinete cair, do que respirar a nitidez inteiriça do silêncio.
À estética aprumada de Mésseder não falta a pulsão da justiça social. O poeta não esquece Elgin, lorde inglês que no séc. XIX retirou parte das esculturas sobreviventes do Parténon e as levou para Inglaterra, nem Teodósio – imperador e cristão – que antes tinha destruído esse mesmo templo. Dois lamentáveis exemplos da afirmação e legitimação da nobreza (ou de uma espécie de nobreza). Estranhamente, estas vis linhagens têm sido as eleitas, sendo preteridos os homens que “a troco de um soldo – como é justo” (p. 16) erguem templos. A propósito de Ídhra, a ironia continua: a bela e maternal ilha agasalhou em seu regaço corsários que se tornaram homens ricos (não ricos homens). Conclui o poeta: “Assim se fundam nobres genealogias de ladrões”. (p. 17).
É a pulsão social, o sentido ético que não deixa nunca de ser o farol, o sul, a coluna vertebral destes cadernos fragmentados.
A revisitação feita pelo sujeito poético leva-nos, por vezes, a uma minimalização do presente e faz sobressair o elemento natural. É a natureza que perdura. Ela estava antes dos deuses e continua depois deles. A presença quase obsessiva do mar é disso exemplo: ”mar de laranjeiras”, “o mar de oliveiras”, o “liso mar azul”, “o mar sem fúria” ou mesmo o “azul sarónico”. Quase que nos atrevemos falar de uma eco-poesia.
Os deuses gregos, que partilhavam o divino com os mortais, já partiram. Na areia restam apenas “estilhas dos ossos de Ícaro”. Aquele que queimou as asas de cera ao querer subir ainda mais alto. Agora estamos abandonados a nós próprios.
Depois deste Sul grego que, brincando com as palavras, norteia Meridionais, temos outro sul: o Alentejo. Um Alentejo mítico e mitificado. Um Alentejo revolucionário e resistente, um Alentejo cujo vibrante silêncio é estratégia de sedução.
A paleta de cores muda. Já não é apenas o branco e o azul: a paisagem está agora marchetada de amarelos, ocres e castanhos. São deste caderno palavras-chave a planície, a verticalidade, a justiça, a cal, o vento e numa estrutura menos visível, mas muito presente: a esquerda.
O vento de que se fala talvez seja real, mas é também uma vontade de mudança, de um rumo novo a um outro sul: um sul ao sul do Sul.
Numa “receita” filológica, Mésseder explica a génese do Alentejo enquanto país: A um rio – o Tejo – juntou-se um advérbio: além. Com homens, vinho e pão rude e digno temos um país:
“Junta o rio e seu advérbio: nasce um país. Com homens, vinho, um pão difícil.” (p.34)
O Alentejo é, aqui, anunciado como um país que exige ser nomeado como se fosse uma planície, um sopro na paisagem. O mar do sul, do Caderno Grego, transforma-se aqui numa “terra interminável”, de “horizonte inteiro e raso onde – nada dir-se-ia – está inscrito” (p.64). Há um cuidado em limpar as palavras e em “resgatá-las” na sua inteireza: caiá-las. Mas a planície, a vastidão, não esquece nunca a verticalidade e a justiça. Metonimicamente, o Alentejo representa a revolução. Além Tejo, há homens que são “pilares de sangue e suor que atravessaram séculos de paisagens golpeadas.” (p. 59). Diz Mésseder que esses pilares de sangue “nunca cessaram de florir por dentro da fome”. Esta imagem é violenta e fortíssima: “florir por dentro da fome”. Se florir implica um renascer e uma Primavera (quiçá um Abril?), a fome é a opressão. Contudo, nem a fome conseguiu aniquilar a esperança e o sonho. O Alentejo afirma-se assim como o berço de uma “ambição civil” (p. 59), ambição essa que ainda vive, mais que não seja nas palavras. (p. 60). Palavras que alguns se esforçam por apagar, como se fiz algures: “as palavras que morrem com os anos” (p. 60)
O breve texto “Torre do Castelo de Beja”: “Como um homem erguido do chão, o orgulho da pedra vertical.” (p. 67) reserva em si mesmo a essência da Revolução: o erguer-se, o levantar-se do chão, o construir-se, o orgulhar-se de si e da sua verticalidade. Esta prosa mínima dialoga directamente com “Operário em Construção” de Vinicius: “E o operário disse: Não!”. É esse o orgulho vertical, a frontalidade, a dignidade, o rigor, o florir por dentro, mesmo contra a fome, contra a opressão, com as nobrezas imerecidas.
O poema “Domingo em Nisa” (p. 41) é um olhar duro sobre um país povoado e sobre uma certa forma de ser português, longe da sombra divina dos deuses gregos. «Domingo em Nisa» é também Cesário e Nobre («Georges! anda ver meu país de romarias e procissões»). É um texto de uma violência atroz, porque nos mostra desabridamente parte do que somos (ou do que nos tornamos). É o mostrar de um Portugal «abrasivo» – «o sol golpeia o ar» –, sem a limpidez grega («imundos de poeira»). O cheiro do fumeiro, do suor, a soneira e as cólicas: a noiva branca, os convidados «barbeados e bovinos» e os «absurdos / longos vestidos de noite para um evento diurno». Contudo, nem esta forma de estar, de ser ou ir sendo, deslustra o ser Meridional.
Os textos são breves, densos, condensados, volumes gnómicos, muitas vezes aforísticos (a lembrar um outro título do autor, Abrasivas). Por vezes aproximam-se da aguarela pela sua aquosidade e leveza, em outros momentos são incisivas legendas. Todos eles são porosos, dados à respiração nítida e a um líquido silêncio, inundado de uma memória de um mar liso, muito azul e de uma planície, paradoxalmente, vertical.
O poema inaugural de Meridionais apresenta-se com uma reconfortante certeza:
“Afinal
o mundo
tem um centro” (p.7)
Esse centro é Delfos, o cordão umbilical dos poetas. Não é preciso procurar mais. Delfos, reverenciado por todo o mundo grego como o umbigo do universo, é o começo, a génese, o centro. É também em Delfos, na água bebida na “Fonte Castalia” que reside a graça poética. Não, seguramente, a “graça” / inspiração de Mésseder: afinal quem bebe “a água que jorra do umbigo da terra” são os outros – aqueles que buscam “um grão de juventude” (p. 8) – não ele. O desejo de distanciamento desses outros que necessitam dessa “água” é mais do que vincado: são eles – esses que a bebem – não ele.
O silêncio de Mésseder não é uma metáfora gasta, mas sinestésico que se vê e se respira. É esse silêncio que se encontra em Epidauro, no teatro. Este anfiteatro reproduzia de forma audível, nas últimas bancadas, o som de um alfinete atirado ao chão. No entanto, é mais fácil hoje ouvir hoje um alfinete cair, do que respirar a nitidez inteiriça do silêncio.
À estética aprumada de Mésseder não falta a pulsão da justiça social. O poeta não esquece Elgin, lorde inglês que no séc. XIX retirou parte das esculturas sobreviventes do Parténon e as levou para Inglaterra, nem Teodósio – imperador e cristão – que antes tinha destruído esse mesmo templo. Dois lamentáveis exemplos da afirmação e legitimação da nobreza (ou de uma espécie de nobreza). Estranhamente, estas vis linhagens têm sido as eleitas, sendo preteridos os homens que “a troco de um soldo – como é justo” (p. 16) erguem templos. A propósito de Ídhra, a ironia continua: a bela e maternal ilha agasalhou em seu regaço corsários que se tornaram homens ricos (não ricos homens). Conclui o poeta: “Assim se fundam nobres genealogias de ladrões”. (p. 17).
É a pulsão social, o sentido ético que não deixa nunca de ser o farol, o sul, a coluna vertebral destes cadernos fragmentados.
A revisitação feita pelo sujeito poético leva-nos, por vezes, a uma minimalização do presente e faz sobressair o elemento natural. É a natureza que perdura. Ela estava antes dos deuses e continua depois deles. A presença quase obsessiva do mar é disso exemplo: ”mar de laranjeiras”, “o mar de oliveiras”, o “liso mar azul”, “o mar sem fúria” ou mesmo o “azul sarónico”. Quase que nos atrevemos falar de uma eco-poesia.
Os deuses gregos, que partilhavam o divino com os mortais, já partiram. Na areia restam apenas “estilhas dos ossos de Ícaro”. Aquele que queimou as asas de cera ao querer subir ainda mais alto. Agora estamos abandonados a nós próprios.
Depois deste Sul grego que, brincando com as palavras, norteia Meridionais, temos outro sul: o Alentejo. Um Alentejo mítico e mitificado. Um Alentejo revolucionário e resistente, um Alentejo cujo vibrante silêncio é estratégia de sedução.
A paleta de cores muda. Já não é apenas o branco e o azul: a paisagem está agora marchetada de amarelos, ocres e castanhos. São deste caderno palavras-chave a planície, a verticalidade, a justiça, a cal, o vento e numa estrutura menos visível, mas muito presente: a esquerda.
O vento de que se fala talvez seja real, mas é também uma vontade de mudança, de um rumo novo a um outro sul: um sul ao sul do Sul.
Numa “receita” filológica, Mésseder explica a génese do Alentejo enquanto país: A um rio – o Tejo – juntou-se um advérbio: além. Com homens, vinho e pão rude e digno temos um país:
“Junta o rio e seu advérbio: nasce um país. Com homens, vinho, um pão difícil.” (p.34)
O Alentejo é, aqui, anunciado como um país que exige ser nomeado como se fosse uma planície, um sopro na paisagem. O mar do sul, do Caderno Grego, transforma-se aqui numa “terra interminável”, de “horizonte inteiro e raso onde – nada dir-se-ia – está inscrito” (p.64). Há um cuidado em limpar as palavras e em “resgatá-las” na sua inteireza: caiá-las. Mas a planície, a vastidão, não esquece nunca a verticalidade e a justiça. Metonimicamente, o Alentejo representa a revolução. Além Tejo, há homens que são “pilares de sangue e suor que atravessaram séculos de paisagens golpeadas.” (p. 59). Diz Mésseder que esses pilares de sangue “nunca cessaram de florir por dentro da fome”. Esta imagem é violenta e fortíssima: “florir por dentro da fome”. Se florir implica um renascer e uma Primavera (quiçá um Abril?), a fome é a opressão. Contudo, nem a fome conseguiu aniquilar a esperança e o sonho. O Alentejo afirma-se assim como o berço de uma “ambição civil” (p. 59), ambição essa que ainda vive, mais que não seja nas palavras. (p. 60). Palavras que alguns se esforçam por apagar, como se fiz algures: “as palavras que morrem com os anos” (p. 60)
O breve texto “Torre do Castelo de Beja”: “Como um homem erguido do chão, o orgulho da pedra vertical.” (p. 67) reserva em si mesmo a essência da Revolução: o erguer-se, o levantar-se do chão, o construir-se, o orgulhar-se de si e da sua verticalidade. Esta prosa mínima dialoga directamente com “Operário em Construção” de Vinicius: “E o operário disse: Não!”. É esse o orgulho vertical, a frontalidade, a dignidade, o rigor, o florir por dentro, mesmo contra a fome, contra a opressão, com as nobrezas imerecidas.
O poema “Domingo em Nisa” (p. 41) é um olhar duro sobre um país povoado e sobre uma certa forma de ser português, longe da sombra divina dos deuses gregos. «Domingo em Nisa» é também Cesário e Nobre («Georges! anda ver meu país de romarias e procissões»). É um texto de uma violência atroz, porque nos mostra desabridamente parte do que somos (ou do que nos tornamos). É o mostrar de um Portugal «abrasivo» – «o sol golpeia o ar» –, sem a limpidez grega («imundos de poeira»). O cheiro do fumeiro, do suor, a soneira e as cólicas: a noiva branca, os convidados «barbeados e bovinos» e os «absurdos / longos vestidos de noite para um evento diurno». Contudo, nem esta forma de estar, de ser ou ir sendo, deslustra o ser Meridional.
Texto publicado no Suplemento Literário Das Artes e Das Letras de O Primeiro de Janeiro a 28 de Maio de 2007
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