Duas notas para o debate sobre «O gosto de ler» – Feira do Livro do Porto, 1/6/2007, em que participaram Teresa Calçada (RBE e PNL), Vladimiro Feliz (vereador da Cultura da CMP), Luísa Dacosta (escritora) e Francisco Madruga (APEL)
1. Não obstante o aumento da percentagem de leitores, observada nas últimas décadas, sobretudo entre as camadas mais jovens da população, a verdade é que no fundamental vivemos num país de não-leitores. Um país com elevados índices de iliteracia e uma intolerável taxa de analfabetismo, 33 anos passados sobre o 25 de Abril. Um país de 9 milhões de habitantes
• onde cada novo livro de poesia de qualidade não é lido por mais de 300 a 500 leitores;
• onde os livros de ensaio têm destino semelhante;
• onde, devido às baixas tiragens, é quase impossível manter colecções de bolso com livros a preços módicos;
• onde não há revista literária que por muito tempo se aguente;
• onde os jornais ditos de referência reduzem cada vez mais o espaço dedicado à divulgação e crítica de livros, substituindo-o por secções de ‘faits divers’ e noticiário sobre frivolidades;
• onde encerram livrarias todos os anos;
• onde muitas editoras e distribuidoras vivem, cada vez mais, em situação de insolvência, numa asfixia lenta, mitigada por efémeros ‘balões de oxigénio’ (a publicação de ‘novidades’, umas após as outras);
• onde o mercado editorial se encontra completamente desregulado (cerca de 80% nas mãos das grandes superfícies (FNAC, hipermercados, Livrarias Bertrand) e o resto nas mãos de livrarias com a corda na garganta), um mercado a ser absorvido, de modo crescente, por um punhado de grandes grupos empresariais, cujo único fito é o lucro;
• onde as grandes superfícies forçam as editoras a ruinosas margens de desconto, o que, paradoxalmente, resulta em aumento generalizado dos preços de venda a público;
• onde entramos na maioria dessas grandes superfícies e nunca encontramos o livro que queremos, pois os escaparates estão inundados de ‘best sellers’ de autores anglo-saxónicos e de outros produtos editoriais altamente tóxicos;
• onde a maioria das famílias portuguesas possui pouquíssimos ou quase nenhuns livros em casa;
• onde existem muitas vilas, e até cidades, sem uma única livraria digna de tal nome;
• onde, quando morreu Augusto Abelaira, ouvimos falar da presença do então presidente da República no lançamento de um livro de José Mourinho, mas nada lhe ouvimos dizer, nesses mesmos dias, acerca da personalidade do autor de “A Cidade das Flores”;
• onde as Bibliotecas Públicas se vêem e acham para arrancar uns tostões aos orçamentos das autarquias a fim de acudir a necessidades várias: crescimento dos fundos documentais, actividades de promoção da leitura, etc.; e onde por vezes são inauguradas, com pompa e circunstância, Bibliotecas Públicas quase sem livros, por autarcas que não perdem um minuto por dia com a leitura;
• onde, sobre a actividade cultural, predomina uma visão economicista e se encara com frequência a cultura – assim a vêem os que nos têm governado – como uma actividade mercantil e um espectáculo mediático;
• onde o louvável e necessário projecto da Rede de Bibliotecas Escolares avança mais lentamente do que seria desejável (por exemplo, no Porto, em cerca de 60 escolas do 1º ciclo, apenas metade ou menos de metade possui bibliotecas integradas na Rede).
Num país assim que – afirma-o José Mário Branco numa das suas canções (falando sintomaticamente de Luís de Camões e do século XVI português) – “te mata lentamente”, num país assim, só nos podemos congratular com campanhas e programas de promoção do livro e da leitura, como o Plano Nacional de Leitura, cuja divisa é LER MAIS.
Campanhas que passam, como esta passa, pela Escola Pública. (Pois, que se saiba, estar equipada com Biblioteca Escolar não é requisito essencial para que uma escola privada funcione; donde, as públicas são melhores do que as privadas.) A Escola que é, neste país, um dos poucos espaços onde a Literatura, a verdadeira Literatura, trabalhada de modo continuado e persistente graças aos professores, vai sobrevivendo. Para a maioria dos jovens, o único espaço, a bem dizer, onde lhes é dada a possibilidade de conviver com o literário.
2. Um segundo tópico a que gostaria de aludir – indirectamente relacionado com o PNL e directamente ligado à questão da promoção do livro – prende-se com a qualidade da Leitura, a qualidade dos livros, a qualidade das selecções que se propõem. Prende-se com o modo como passamos pelos ‘clássicos’ e pelos grandes livros, mesmo os da chamada literatura infantil, como gato por vinha vindimada, e nos deixamos encandear pelo novo só porque é novo – sendo muitas vezes medíocre. E prende-se eventualmente com a qualidade das actividades de promoção da leitura e de animação. Por vezes pergunto-me: anima-se sim; mas o quê?, e como? E, em boa verdade, promove-se?
Aqui não resisto a evocar por graça um dos episódios mais hilariantes do “Dom Quixote de La Mancha”. Refiro-me ao capítulo VI, cujo título é, na versão de Aquilino Ribeiro, “[Capítulo] Que trata do largo escrutínio que o cura e o barbeiro fizeram na livraria do nosso engenhoso fidalgo”.
Nesta passagem se narra a iniciativa do cura amigo de Dom Quixote que, certa manhã, com a ajuda do barbeiro, trata de lançar ao fogo quanto livro mau, quanto mau romance de cavalaria encontra na biblioteca pessoal de Dom Quixote. Livros responsáveis, segundo o cura – que era homem de saber e bom gosto literário – pelos desvarios mentais do ‘cavaleiro da triste figura’.
Não advogando que se queimem livros, e lembrando-me sempre de outras muitas fogueiras e censuras de má memória, não quero deixar de dizer que esta espécie de parábola de Cervantes é uma lição sobre a qual nem sempre temos sabido meditar. É dos mais admiráveis textos que conheço sobre a questão da promoção da leitura, a promoção dos bons livros. Por isso entendo – como outros já têm explicado melhor do que eu – que seria preferível a divisa do PNL ser LER MELHOR em vez de LER MAIS. Com as implicações que este ‘slogan’ deveria ter.
• onde cada novo livro de poesia de qualidade não é lido por mais de 300 a 500 leitores;
• onde os livros de ensaio têm destino semelhante;
• onde, devido às baixas tiragens, é quase impossível manter colecções de bolso com livros a preços módicos;
• onde não há revista literária que por muito tempo se aguente;
• onde os jornais ditos de referência reduzem cada vez mais o espaço dedicado à divulgação e crítica de livros, substituindo-o por secções de ‘faits divers’ e noticiário sobre frivolidades;
• onde encerram livrarias todos os anos;
• onde muitas editoras e distribuidoras vivem, cada vez mais, em situação de insolvência, numa asfixia lenta, mitigada por efémeros ‘balões de oxigénio’ (a publicação de ‘novidades’, umas após as outras);
• onde o mercado editorial se encontra completamente desregulado (cerca de 80% nas mãos das grandes superfícies (FNAC, hipermercados, Livrarias Bertrand) e o resto nas mãos de livrarias com a corda na garganta), um mercado a ser absorvido, de modo crescente, por um punhado de grandes grupos empresariais, cujo único fito é o lucro;
• onde as grandes superfícies forçam as editoras a ruinosas margens de desconto, o que, paradoxalmente, resulta em aumento generalizado dos preços de venda a público;
• onde entramos na maioria dessas grandes superfícies e nunca encontramos o livro que queremos, pois os escaparates estão inundados de ‘best sellers’ de autores anglo-saxónicos e de outros produtos editoriais altamente tóxicos;
• onde a maioria das famílias portuguesas possui pouquíssimos ou quase nenhuns livros em casa;
• onde existem muitas vilas, e até cidades, sem uma única livraria digna de tal nome;
• onde, quando morreu Augusto Abelaira, ouvimos falar da presença do então presidente da República no lançamento de um livro de José Mourinho, mas nada lhe ouvimos dizer, nesses mesmos dias, acerca da personalidade do autor de “A Cidade das Flores”;
• onde as Bibliotecas Públicas se vêem e acham para arrancar uns tostões aos orçamentos das autarquias a fim de acudir a necessidades várias: crescimento dos fundos documentais, actividades de promoção da leitura, etc.; e onde por vezes são inauguradas, com pompa e circunstância, Bibliotecas Públicas quase sem livros, por autarcas que não perdem um minuto por dia com a leitura;
• onde, sobre a actividade cultural, predomina uma visão economicista e se encara com frequência a cultura – assim a vêem os que nos têm governado – como uma actividade mercantil e um espectáculo mediático;
• onde o louvável e necessário projecto da Rede de Bibliotecas Escolares avança mais lentamente do que seria desejável (por exemplo, no Porto, em cerca de 60 escolas do 1º ciclo, apenas metade ou menos de metade possui bibliotecas integradas na Rede).
Num país assim que – afirma-o José Mário Branco numa das suas canções (falando sintomaticamente de Luís de Camões e do século XVI português) – “te mata lentamente”, num país assim, só nos podemos congratular com campanhas e programas de promoção do livro e da leitura, como o Plano Nacional de Leitura, cuja divisa é LER MAIS.
Campanhas que passam, como esta passa, pela Escola Pública. (Pois, que se saiba, estar equipada com Biblioteca Escolar não é requisito essencial para que uma escola privada funcione; donde, as públicas são melhores do que as privadas.) A Escola que é, neste país, um dos poucos espaços onde a Literatura, a verdadeira Literatura, trabalhada de modo continuado e persistente graças aos professores, vai sobrevivendo. Para a maioria dos jovens, o único espaço, a bem dizer, onde lhes é dada a possibilidade de conviver com o literário.
2. Um segundo tópico a que gostaria de aludir – indirectamente relacionado com o PNL e directamente ligado à questão da promoção do livro – prende-se com a qualidade da Leitura, a qualidade dos livros, a qualidade das selecções que se propõem. Prende-se com o modo como passamos pelos ‘clássicos’ e pelos grandes livros, mesmo os da chamada literatura infantil, como gato por vinha vindimada, e nos deixamos encandear pelo novo só porque é novo – sendo muitas vezes medíocre. E prende-se eventualmente com a qualidade das actividades de promoção da leitura e de animação. Por vezes pergunto-me: anima-se sim; mas o quê?, e como? E, em boa verdade, promove-se?
Aqui não resisto a evocar por graça um dos episódios mais hilariantes do “Dom Quixote de La Mancha”. Refiro-me ao capítulo VI, cujo título é, na versão de Aquilino Ribeiro, “[Capítulo] Que trata do largo escrutínio que o cura e o barbeiro fizeram na livraria do nosso engenhoso fidalgo”.
Nesta passagem se narra a iniciativa do cura amigo de Dom Quixote que, certa manhã, com a ajuda do barbeiro, trata de lançar ao fogo quanto livro mau, quanto mau romance de cavalaria encontra na biblioteca pessoal de Dom Quixote. Livros responsáveis, segundo o cura – que era homem de saber e bom gosto literário – pelos desvarios mentais do ‘cavaleiro da triste figura’.
Não advogando que se queimem livros, e lembrando-me sempre de outras muitas fogueiras e censuras de má memória, não quero deixar de dizer que esta espécie de parábola de Cervantes é uma lição sobre a qual nem sempre temos sabido meditar. É dos mais admiráveis textos que conheço sobre a questão da promoção da leitura, a promoção dos bons livros. Por isso entendo – como outros já têm explicado melhor do que eu – que seria preferível a divisa do PNL ser LER MELHOR em vez de LER MAIS. Com as implicações que este ‘slogan’ deveria ter.
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