segunda-feira, junho 30, 2025

"Um Quarto só Seu", Virginia Woolf

Penguin Clássicos, 2025. Tradução de Isabel Castro Silva 
Uma das razões, talvez a mais importante mas não única, que me leva a ler Virginia Woolf é a sua escrita. Embora este livro tenha sido a compilação e adaptação de uma conferência de dois dias, em Londres, no ano de 1928, a fluidez do discurso é notável, tal como a inteligência viva dos argumentos que Virginia Woolf utiliza para desmontar uma sociedade patriarcal e catedrática, não completamente diferente dos dias de hoje. O que nos deve preocupar é a actualidade do que ali se afirma e da misoginia que entretanto voltou todas as suas armas, antes escondidas, para um chamado «anti-wokismo» (não gosto da expressão ''woke'') cuja pretensa crítica mais não é do que a tentativa de travar qualquer superação das liberdades conquistadas, séculos fora. Ela dá exemplos dramáticos dos ataques de que eram objecto não só as mulheres, mas igualmente tudo o que não fosse branco, homem e cristão. A poesia e a literatura, tal como nos dias de hoje, também sentiram estas ondas de ódio. E tomar conhecimento das propostas apresentadas pelos seus defensores não deixa de ser uma viagem ao pior dos pesadelos.

«Um Quarto só Seu» não é somente uma vindicação feminista. É muito mais do que isso: é uma lição sobre a seriedade que devemos à literatura. É uma aula extraordinária aos leitores (escrevo isto quando se divulga, publicamente, que 53% dos portugueses não leram um só livro em 2024!!) e uma resenha sobre a necessidade de circunspecção e recolhimento para quem escreve, coisa que para as mulheres era, tão-só, impossível de satisfazer, isto pelo menos até ao século XIX. O facto de Virginia Woolf o fazer, uma coisa aparentemente simples como escrever, era porque uma sua tia, ao cair de um cavalo e morrendo em virtude (!) da queda, lhe deixou 500 libras por mês até ao fim dos seus dias. E não era casada, nem tinha filhos, tendo o privilégio de um quarto sossegado para a escrita e não a sala de visitas ou de estar de uma casa. Percebemos, no final desta leitura extraordinária, que não é de somenos. E ela dá exemplos concretos em frases interrompidas em Charlotte Brontë, em «Jane Eyre», com a desenvoltura literária, ainda que escondida dos seus amigos e familiares, de uma Jane Austen. Já para não falar da proibição de mulheres entrarem em bibliotecas públicas para pesquisarem o que bem entendessem, sem serem acompanhadas por mestres ou professores, como aconteceu a Woolf em Oxbridge [cidade universitária imaginada, mas seria a junção de Oxford com Cambridge].

«Voltei pois à minha pousada e, enquanto percorria as ruas escuras, ponderava isto e aquilo, como se costuma fazer no final de uma jornada de trabalho. Perguntei-me por que razão Mrs. Seton não tinha dinheiro para nos deixar; e no efeito que a pobreza tem no espírito; e pensei nos estranhos velhos cavalheiros que vira nessa manhã com abafos de peles pelos ombros; e recordei como, a um assobio nosso, eles vinham a correr; e pensei no órgão a estrondear na capela e nas portas fechadas da biblioteca; e pensei   como é desagradável ficar trancada do lado de fora; e pensei que é talvez pior ficar trancada do lado de dentro; e, pensando na segurança e prosperidade de um sexo e na pobreza e insegurança do outro e no efeito de tradição e da falta de tradição no espírito de uma escritora, pensei por fim que era tempo de arregaçar a pele engelhada do dia, com os seus argumentos e as suas impressões e a sua cólera e o seu riso, e atirá-la para a sebe. Parecia-me estar sozinha em companhia inescrutável. Todos os seres humanos estavam deitados a dormir - de bruços, horizontais, mudos. Nas ruas de Oxbridge ninguém parecia mexer-se. mesmo a porta do hotel abriu de rompante ao toque de uma mão invisível - era tão tarde que não havia sequer um moço de recados acordado que me alumiasse o caminho até ao quarto. (pags.34/35)

«E com aquela inquietude com que se tiram e se voltam a pôr livros na prateleira sem olhar para eles, comecei a vislumbrar uma era futura de pura virilidade assertiva, uma era que as cartas de certos professores (as cartas de Sir Walter Raleigh, por exemplo) parecem prenunciar e que os governantes de Itália [de Mussolini] já puseram em prática. Pois é difícil não se ficar impressionada com a masculinidade não mitigada em Roma; e, qualquer que seja o valor da masculinidade não mitigada no Estado, podemos questionar o seu efeito sobra a arte da poesia. Em todo o caso, segundo os jornais, há uma certa ansiedade sobre a ficção em Itália. Decorreu um encontro de académicos com o objetivo de ''desenvolver o romance italiano''. ''Homens famosos pelos seus apelidos ou na alta finança ou na indústria ou nas corporações fascistas'' reuniram-se no outro dia e discutiram o assunto e enviaram um telegrama ao Duce manifestando esperança ''de que a era fascista dê luz dentro em breve uma poesia digna do seu nome''. Podemos todas juntar-nos a essa esperança piedosa, mas é de duvidar que a poesia possa sair de uma incubadora. A poesia deve ter uma mãe além de um pai. O poema fascista, receio bem, será um pequeno aborto hediondo, como aqueles que vemos em frascos de vidro no museu de uma qualquer cidade de província. esses monstros nunca vivem muito tempo, ao que se diz; nunca se viu um prodígio dessa espécie a cortar erva num campo. Duas cabeças num só corpo não duram uma vida inteira.» (pág.139)

alc

terça-feira, junho 24, 2025

«Panegírico», Guy Debord

 

Antígona, 1993. Tradução de Júlio Henriques
Um ano após esta edição da Antígona, Guy Debord suicida-se numa casa de campo de Auvergne já afastada da «sua» Paris, segundo ele, e creio que por todos nós, em ruínas amontoadas pelo lucro, pela urbanização precursora de uma alienação sem limites, pela gentrificação contemporânea que ele não veio a conhecer nesta dimensão tão brutal como ela é hoje e que é observada por todas as cidades europeias. 
De qualquer modo, Guy Debord continua irrecuperável pelos media. Este «Panegírico» é de consultar de tempos a tempos, para entender de como é feita essa impossibilidade, baseada no desprezo profundo por uma sociedade que o não soube ser, recusando a felicidade e a deriva da liberdade total. Neste momento, em que as soluções fascistas repugnantes andam de braço dado com a especulação do lucro sobre os nossos corpos, promovida pelos estados e tornando-nos mercadorias para venda e troca, ainda há quem abrace, com denodo incontido, o estado a que se chegou. Um panegírico é livre de toda a crítica ou censura como nos lembra Debord. É ele mesmo, sem quaisquer laivos de interpretação.

«Aqueles que a respeito de nada querem escrever depressa o que ninguém lerá uma só vez até ao fim, nos jornais ou nos livros, gabam com grande convicção o estilo da linguagem falada, por o acharem muito mais moderno, directo, fácil. Mas eles próprios não sabem falar. Os seus leitores tão-pouco, visto a linguagem efectivamente falada nas modernas condições de vida ter socialmente chegado a um resumo da sua representação, eleita em segundo grau pelo sufrágio mediático; somada, dará umas seis ou oito maneiras de falar, incessantemente repetidas, e menos de duas centenas de vocábulos, nestes incluindo uma maioria de neologismos; vendo-se a terça parte deste conjunto sujeita a renovação de seis em seis meses. Tudo isso favorece um certo rápido liame. Por meu lado, e pelo contrário, vou escrever sem afectação e sem canseira, como a coisa mais natural e mais fácil do mundo, a língua que aprendi e na maioria das circunstâncias sempre falei. Não sou eu que tenho de a modificar. Os Ciganos consideram com razão que só podemos dizer a verdade na nossa própria língua; na do inimigo deverá reinar sempre a mentira. Outra vantagem: tendo como referência o vasto corpus dos textos clássicos publicados em francês ao longo dos cinco séculos anteriores ao meu nascimento, mas sobretudo nos dois últimos, será sempre fácil traduzirem-me convenientemente em qualquer idioma do futuro, mesmo quando o francês já for língua morta.» (pág.17/18)

«(...) Todas as revoluções penetram na história, e nem por isso a história está pejada delas; os rios das revoluções voltam aonde começaram, para de novo fluírem.» (pág.32)

«(...) Quando ''ser absolutamente moderno'' se tornou uma lei especial proclamada pelo tirano, aquilo que o honesto escravo acima de tudo receia é que o possam suspeitar de passadista.» (pág.75)

Infelizmente, o aumento de escravos honestos nas sociedades modernas é directamente proporcional ao número das tiranias que surgem por todo o mundo. Sobre a escravidão moderna citarei Agamben que sobre Debord afirmou: «Os livros de Debord constituem a análise mais lúcida e severa das misérias e escravidões de uma sociedade - a do espectáculo, em que vivemos - que nos nossos dias estendeu o seu domínio a todo o planeta. Como tais, os seus livros não precisam de ser esclarecidos nem elogiados, e ainda menos necessitam de um prefácio.» (Da badana do livro).

alc

domingo, junho 22, 2025

«Não São Para Valsas Todas as Noites», José Miguel Gervásio

 

Língua Morta, Outubro de 2022
«(...) Ríamos para afastar o mal que o destino podia fazer às pessoas felizes. Felizes como nós, filhos da revolução e, sem sabermos, de nós mesmos. Por vezes, debaixo do sol tórrido, sem mais nada para fazer, observávamos o tempo a chegar. Bastava-nos isso e a hora de ir comprar gelados ao minimercado Europa que ficava do outro lado da rua. O pequeno entreposto comercial era palco de grandes ambições. Um projecto familiar trazido de uma aldeia do interior do país que pertencia a um tempo não muito distante. Pois ali vivia o homem concreto no seu verdadeiro habitat. as tarefas diárias limitadas ao tempo, ao horário do expediente e ao plástico colorido gerido por um afável capitalista do bairro cujo propósito era o do enriquecimento rápido, de modo a aspirar a todos os prazeres que o dinheiro pudesse dar. Os raciocínios de vinha-d'alhos de uma filistina fé não apresentavam o menor desvio ao conservadorismo judaico-cristão. Ali não houve revolução nenhuma. Todo o animal procura o seu sentido de viver, é verdade. De que valem as grandes filosofias da existência se o conforto do plástico é superior à alienação que o trabalho fomenta? De que vale a máquina que libertou o homem da escravatura da labuta se o atirou para um mundo de fumo onde apenas se vislumbram sombras e silhuetas? A mercadoria confunde-se com o trabalhador, tudo tem um preço. Sem exploração não há lucro. E o lucro que vem a ser? Palavras supostamente sábias, ditas vezes sem conta pelo pai do Quirino em palestras gratuitas à porta do minimercado Europa. O pessoal mais novo à volta dele, a chupar Olás, a ouvi-lo. (...)» (págs.54,55)

E o romance de José Miguel Gervásio continua nesta toada. No final, todos nós achamo-nos como os putos a ouvir o comentador Quirino à porta de minimercados em fervorosos raciocínios em vinha-d'alhos. É o que mais há por aqui, ainda com o nome faiscante de Europa à nossa porta, entretanto escancarada para todas as soluções mirabolantes que a sociedade nos impingiu de grosso modo. Para consumir, de preferência, frescas. Como os gelados que chupamos em frente a televisores. 
Uma leitura a não perder.

alc

sábado, junho 14, 2025

«A Estação da Sombra», Léonora Miano

 

Antígona, Outubro de 2015. Tradução de Miguel Serras Pereira
Não é um livro qualquer, este «A Estação da Sombra», da camaronesa Léonora Miano. A sua obra baseia-se na tradição oral africana, talvez situada no século XVI ou XVII, que ainda sobrevive sobre o terror da escravatura a iniciar então a sua acumulação primitiva de lucros baseada na extracção violenta de homens, mulheres e crianças. Essa tradição oral foi estudada não só pela memória existente através de gerações, e, felizmente, bem viva nas sociedades africanas ainda hoje, mas também pela acção da Société Africaine de Culture e da Unesco conduzida principalmente no Benim, no Gana e nos Camarões. Mas poder-se-ia alargar a todas as zonas onde o comércio escravo prosperou. 

O romance leva-nos a uma realidade esmagadora: o sofrimento indescritível das pessoas apanhadas nas teias (literalmente, em redes) da escravatura e do aprisionamento, e igualmente na desconstrução das estruturas políticas africanas baseadas quer em monarquias hierárquicas com as Bwele que aumentaram o seu autoritarismo e discricionaridade desde que iniciaram os contactos com os brancos que exigiam um comércio de captura de inimigos que até aí não o foram nunca, como os Mulongo onde, embora existindo um chefe, o conselho de anciãos era o que detinha efectivamente o poder. Na destruição completa deste último povo centra-se o romance de Léonora Miano em páginas de grande beleza mística que se intercala com um horror sentido por quem não compreende o que se desenrola à frente dos seus olhos, destruindo a unidade familiar, social e económica de comunidades que se julgavam seguras e em paz. Esse horror que vinha em grandes velas brancas sopradas pelos ventos de pondo (norte) num oceano indescritível e terrífico, fim do seu mundo conhecido.

No entanto, a esperança residia, talvez metaforicamente, num povo que se reconstituiu nos confins de um grande rio, cercado por pântanos inacessíveis e onde se encontravam todos os povos fugidos da escravatura e da captura humanas para serem vendidos em hasta pública em países longínquos onde se dizia habitarem homens brancos sem alma, visto que só viam a riqueza no ouro, na violência e no comércio: era a povoação recém-formada dos Bebayedi. Povos em fuga, sem história, mas resistente nas suas múltiplas tradições, solidário, compreensivo para com as múltiplas línguas e falas que se fixa, nas margens de um grande rio que lhe traz a riqueza que necessita e nada mais do que isso.

«Não foi unicamente por cima da cabana daquelas cujos filhos não foram encontrados que a sombra se suspendeu por um tempo. A sombra está por cima do mundo. A sombra impele as comunidades a enfrentarem-se, a fugirem da sua terra natal. Quando tiver passado o tempo, quando as luas se tiverem sucedido às luas, quem guardará a memória destas dilacerações? Em Bebayedi, as gerações por nascer saberão que fora necessário fugir para escapar às aves de rapina. Ser-lhes-á dito o porquê destas cabanas levantadas sobre as águas. Ser-lhes-á dito: 'A desrazão apoderara-se do mundo, mas alguns recusaram-se a habitar as trevas. Vós sois a descendência dos que disseram não à sombra.'» (pág.135)

alc

domingo, junho 08, 2025

"Electra 28"



Costumo comprar a Electra de um modo intermitente mas não podia faltar a este último número, o 28, o da Primavera de 2025 (assim dito é muito mais apelativo). António Guerreiro conduz-nos pela história e perspectivas actuais e futuras do livro: o de papel e também o digital e a (im)possibilidade deste constituir uma verdadeira substituição ao velho fólio. Para quem gosta de livros e não pode viver sem eles, eis um número da revista que não pode perder.

Embora os artigos sejam muito díspares relativamente à sua qualidade, há alguns, dir-se-ia na sua grande maioria, que vale a pena ler, sublinhar, guardar e memorizar como argumentos necessários à conservação do livro tradicional, ainda assim, e até hoje, mais rápido de consultar do que o digital. Aliás, coisa que nenhum artigo do "Assunto" da Electra 28 releva é o paradoxo do livro digital copiar, no ecrã luminoso, a textura do papel, a passagem visual de uma página para a seguinte ou, até, o som de uma página a ser voltada por dedos inexistentes. Toda uma retro-tecnologia, pelos vistos! E o valor do preço dos livros digitais é tanto mais caro, quanto maior for a imitação do velho livro em papel. 

Sobre a indústria livreira actual com a série interminável de títulos que nos afogam em espaços comerciais que vendem toda a parafernália electrónica (já vi um carro eléctrico da Citroën e batedeiras para sumos à venda junto aos livros de Valter Hugo Mãe; mas, pensando bem, por que não?) é analisada com algum pormenor, principalmente nas entrevistas a John B. Tompson e a Roger Chartier. Este último afirma na entrevista, o seguinte:

"A originalidade radical do mundo electrónico foi o de estabelecer uma separação drástica entre o suporte e o discurso. O ecrã é o suporte de todos os textos que o seu utilizador convoca ou produz. Não está de modo algum ligado a um discurso particular, como acontece com os livros. Um 'livro electrónico' não é verdadeiramente um livro, uma vez que a identidade do seu discurso já não é materializada pelo objecto que o contém e transmite. No mundo da textualidade digital, os discursos já não estão inscritos em objectos que permitam reconhecê-los na sua identidade própria. O mundo digital é um mundo de fragmentos descontextualizados, justapostos, passíveis de serem indefinidamente recompostos, sem que seja necessário ou desejável compreender a relação que os inscreve no livro de onde foram extraídos". 

Entre mais considerações que aqui se poderiam plasmar, vale a pena ler os artigos sobre o que se entende pela novíssima "leitura acelerada" dos dias de hoje e da profusão de temas 'invasores' com que nos deparamos todos os dias e que nos leva a uma outra questão não menorizada pela revista: a da nova censura empresarial radicada nas redes sociais e do papel da Amazon na canibalização das editoras (ainda há editores que escolhem a coerência dos seus catálogos, ou são autores que, cada vez mais, pagam a sua própria edição?) e livrarias que ainda tentam ser independentes. 

A não perder igualmente: "O livro, esse objecto mágico",  artigo de António Guerreiro, "A Biblioteca de Alexandria e as bibliotecas", de Robert Darnton, "O livro numa encruzilhada" de Diogo Ramada Curto e "Pod.Cast", de Diogo Vaz Pinto. 

alc

terça-feira, junho 03, 2025

«Os Sonâmbulos», Hermann Broch

 

Relógio D'Água, 2018. Tradução de António Sousa Ribeiro
Numa entrevista datada de 1962, ao Jornal de Letras e Artes, Mário Cesariny, talvez muito mal-disposto, classifica Hermann Broch como um mau romancista, colocando-o ao lado de um Sade, de um Melville, de um Jünger, de um Proust, de um Kafka, de um Lautréamont, de um Genet e de um Jarry, entre outros. Claro que não poderia faltar um mau poeta para ser comparado a Broch: Fernando Pessoa! Não sei o que diria o autor, falecido em 1951, se se visse comparado a estes nomes, mas no caso dele não me sentiria, de modo algum, frustrado. E Cesariny é um grande poeta. 

Hermann Broch escreveu três romances de uma trilogia a que deu o título geral de «Os Sonâmbulos» constituída  por «1888 - Pasenow ou o romantismo», «1903 - Esch ou a anarquia» e «1918 - Huguenau ou a objectividade». Um período histórico que não é um acaso: situa-se entre a ascensão de Guilherme II até ao final da I Guerra.

Quando chegamos ao fim da trilogia sentimos já alguma nostalgia de não podermos continuar a analisar a verdadeira saga de personagens que povoam e se cruzam nestes três romances. Hermann Broch convive com a técnica da narrativa, juntamente com alguma poesia, considerações pessoais e pensamento disperso. É, talvez, neste último aspecto, que Hermann Broch, talvez contraditoriamente, se encontra mais débil e mais solto. É um pensador humanista, não um filósofo no sentido da criação de uma estrutura lógica de pensamento novo, mas interessante de estudar porque descreve pormenorizadamente e de uma forma magistral as personagens que pontificaram na República de Weimar. Talvez seja por isso que Hanna Arendt o prefaciou postumamente (em vida poucos o conheceram como escritor) e teve igualmente o reconhecimento tardio de Thomas Mann que o comparou a Musil. Estão a verificar este vaivém de considerações póstumas entre um Cesariny e estes últimos. Adiante, que isto vale pouco. 

Hermann Broch dá-nos a sua visão de uma cultura política e social alemã em decadência rápida de valores e de pontos cardeais seguros sobre o império que se esboroa e o fim da I Guerra Mundial. Todo um pathos que vai levar a uma ascensão do nazismo e do totalitarismo que ele conheceu bem, tendo escapado por pouco à morte quando foi aprisionado por aqueles. Talvez por isso, coloque geograficamente o romance na Alsácia, mais concretamente na cidade de Trier, terra natal de Marx, que mudou de mãos variadíssimas vezes entre franceses e alemães. Trier é também Trèves. As personagens são esmiuçadas até ao limite por Broch e é esse facto que mais interage com a cumplicidade do leitor. Nelas vemos um Bertrand cínico, rico, burguês, que esconde a sua homossexualidade maltratando psicologicamente as mulheres com quem se cruza ou que se cruzam com os seus amigos; von Pasenow, militar de carreira apaixonado por uma prostituta, Ruzena, que abandona na pior das misérias, para continuar a casa de família, casando por interesse e que reaparece no terceiro romance completamente derrotado pela inversão de valores que não consegue compreender; Erch, um anarquista que deixa de o ser para abraçar a bíblia evangélica, protestante; Huguenau, um arrivista, desertor, assassino de Erch, que monta o elevador social com um sucesso material e moral imenso. É ele a quem Broch dá um exemplo máximo do que é um protagonista, um actor grandiloquente do totalitarismo.

Dir-me-ão que a descrição desta narrativa é mais do mesmo. Em Hermann Broch, não. O facto de a trilogia ser chamada de «sonâmbula» não é pelo facto destas personagens estarem adormecidas ou num sono hipnótico conforme as circunstâncias políticas, ou fosse do que fosse. É porque mudam consoante os ventos e não lutam para que os factos sejam outros. Não agem. Não produzem ideias que possam transformar em acção, como diria o muito citado Hegel, a quem Broch dá uma primazia especial (também não falta Kant ou Fitche). Há uma personagem, contudo, a que dei talvez demasiada atenção no último romance, aquele em que tudo arde, o mais terrível, em que o fim da guerra se transforma numa revolução, quando da tentativa soviética de 1918: essa personagem é Hanna Werdling. Leitora compulsiva, bela, casada com um marido ausente na guerra, comporta-se como uma espécie de máquina sexualizada quando ele vem de licença, sem qualquer efusão sentimental. Não nutre sensibilidade alguma, talvez um amor distante pelo filho adolescente, mas nem isso a demove de estar distanciada de tudo, de todos, numa enorme casa, cujo jardim a chama constantemente para que observe a mudança única que vê: a da Natureza. A própria natureza mata-a com a gripe «espanhola», também ela uma das epidemias de 1918.

Deixemos Broch dizer ao que vem: «Este romance assenta no pressuposto de que a literatura tem como missão ocupar-se, por um lado, daqueles problemas humanos que são rejeitados pela ciência, por não serem minimamente acessíveis a um tratamento racional e apenas levarem uma vida aparente num jornalismo filosófico moribundo, e, por outro lado, daqueles problemas que a ciência, no seu progresso mais lento, mais exacto, ainda não abarca. O património da literatura, entre o 'já não' e o 'ainda não' da ciência, tornou-se, assim, mais limitado, mas também mais seguro e inclui todo o domínio da experiência irracional, situando-se, mais precisamente, no terreno fronteiriço em que o irracional se manifesta como acto e se torna possível exprimi-lo e representá-lo. Daí resulta a tarefa específica de mostrar como o onírico determina a acção e como acontecer está constantemente pronto a deslizar para o onírico.» (pág.8)

Ler os autores de cultura alemã que descrevem o império e, depois, a República de Weimar é uma lição actual, em que a realidade, tantas vezes analisada por Hermann Broch, se funde com o irracional como demonstra o texto acima. O onírico pode transformar-se rapidamente (mais depressa do que julgamos possível) num pesadelo em que ninguém sai ileso. A resistência queda-se perante o absoluto do totalitarismo, porque há o sonambulismo das massas e, dentro delas, a individualidade pouco mais é do que um arrobo, uma mentira que se vende a quem dá mais por ela, pela subjugação do tal mal de que fala Arendt.

alc