domingo, junho 09, 2024

Revista Triplov. Deriva



Eis um mapa dos navegantes das Ilhas Marshall. As suas derivas eram cartografadas em rotas apontadas para as estrelas do céu. Nunca se perderam nos mares, ao que consta. A Deriva Editores criou-se em 2003 acompanhada por um mapa que obrigava à atenção inconformada dos que não tinham voz ou era tão ténue que mal se ouvia. Foi assim a partida para o largo: recusa de mais literatura anglo-saxónica já de si excedentária nos escaparates e dar voz às literaturas minoritárias com a Galiza, o País Basco, a Bretanha, a Irlanda, a Catalunha, a Áustria, a Argentina. Foram realidades que nos obrigaram a um equilíbrio onde os factores se cruzavam literariamente do bom ao excelente, da luta política autonómica ou independentista, até à denúncia das majestosas democracias europeias que não escondiam a sua tendência centrípeta de engolirem as incómodas culturas minoritárias e lançarem para o ostracismo as riquíssimas línguas periféricas. Alguns pagaram com encarceramentos duradouros a sua ousadia como o basco Anjel Rekalde (20 anos de prisão) «Dorregarai – A Casa-Torre», o francês Jean-Marc Rouillan, (prisão perpétua) «Odeio as Manhãs», os americanos John Zerzan (organizador das manifestações de Seattle) «Futuro Primitivo», Peter Lamborn Wilson (Hackim Bey, o seu nome muçulmano) «Utopias Piratas», o bretão Patrick Raynal «Ex», o escocês a viver na Bretanha, Kenneth White, este último o criador do movimento geopoético e autor de «O Espírito Nómada», os galegos Antón Riveiro Coello «As Rolas de Bakunine», Xurxo Borrazás «Ser ou Não», Xavier Queipo «Bebendo o Mar» ou Gonzalo Navaza «Erros e Tanatos». A edição de «A Mobilização Global, seguido de Estado-Guerra» do catalão Santiago López-Petit veio apresentar a política notívaga de subversão contra o Estado na senda de uma verdadeira tentativa de propor as várias possibilidades de insubmissão permanente. «O nómada que existe em cada um de nós como uma nostalgia, como uma potencialidade, não tem a noção de identidade pessoal, a «consciência de si» é-lhe estranha. Sem dizer «penso» ou «sou», põe-se em movimento e a caminho faz melhor do que «pensar», no sentido denso da palavra, enuncia, articula um espaço-tempo de múltiplas focalizações que é como que um esboço do mundo. O movimento nómada não segue uma lógica rectilínea, com um princípio, um meio e um fim. Tudo aqui é meio. O nómada não segue para qualquer lugar, e para mais em linha recta, mas evolui num espaço e regressa muitas vezes às mesmas pistas, iluminando-as e talvez, se for um nómada intelectual, com novas luzes.» Kenneth White «Só a rejeição total da realidade no-la pode mostrar na sua verdade. Só a rejeição total do mundo nos diz a verdade do mundo. Mas esse gesto radical de rejeição já não é o gesto moderno que, depois da destruição anunciava e preparava um novo começo. Não há começo absoluto porque a «tabula rasa» não nos deixa diante de nenhuma verdade absoluta. A rejeição total da realidade apenas nos oferece «uma» verdade da realidade. Esta é a nossa verdade.» Santiago López-Petit Antes, em 2006 e 2008, publicou-se com Vicente Romano, «A Formação da Mentalidade Submissa» e «Intoxicação Linguística» dois livros que denunciam os media como o alfa e o ómega na formação do indivíduo amorfo, narcisista, muito bem com ele próprio e com a sociedade que o escraviza e que, como bom obediente, o aceita, feliz. O escravo que tem orgulho em sê-lo: «A consciência indiferenciada corresponde à vida sentimental estereotipada. O pensamento mágico acrítico, gera uma consciência conformista, submissa. O que significa deixar por mãos alheias a solução dos problemas próprios, situação em que tudo pode ser facilmente manipulado por esses interesses estranhos. Aí radica o perigo de passar as rédeas dos assuntos pessoais para as mãos dos especialistas ou do novo credo académico. Autodeterminação significa, antes de tudo, libertar-se da angústia e ganhar consciência das determinações impostas por terceiros, para conseguir ultrapassá-las.» Vicente Romano De resto, as coisas fluíam e mais tarde, em 2014, com a edição de «Manual de Sabotagem – Escritos sobre política, memória e capitalismo», de Elfriede Jelinek, tão nobelizada, quanto esquecida e ostracizada na sua própria terra, a Áustria (em Viena, em três livrarias de referência não encontrei um único livro dela), conseguiu-se dar voz a esta autora única do desencanto germânico, afirmando que nunca a Alemanha ou a Áustria do Anchluss conseguiram ultrapassar o nazismo. Não só a culpa, mas o nazismo tal qual. Ele subsiste ainda, vivo. Nos anos 80, suicidaram-se vários operários na fábrica da Peugeot em Sochaux. Editou-se, em 2014, «Crónicas Peugeot» do sociólogo Michel Pialoux em conversas com o operário Christian Corouge, de modo a denunciar o trabalho demente porque repetitivo, mesmo na cadeia robótica que despontava: «Não sei se algum dia partirei da fábrica. Porque vou contar-te uma coisa perfeitamente parva, mas... há um ano, estivemos uma semana no desemprego, mesmo antes das férias, portanto isto dava cinco semanas. Ao fim de quatro semanas de férias – estávamos perto de Cherbourg – já não dava mais. Estava a bater mal lá. Estava a bater mal, fui obrigado a vir embora. Sabes, uma espécie de necessidade masoquista. Não estava bem. Quatro semanas, tudo bem, vês: recuperas fisicamente, fazes o ponto da situação na tua cabeça, tudo bem, descontrais... e depois, dizes para contigo: ‘O que é que me espera quando regressar? Portanto preciso de voltar. Preciso de voltar para ver, para estar ali porque... começo a estar farto das férias, começo a andar às voltas. Ando aqui a coçar os tomates, tenho que bazar’. E foi o que nos aconteceu. Viemos embora uma semana antes. Demos cabo de uma semana de férias para vir embora. Precisava de ir ver a fábrica durante as férias, vês, quando a fábrica está parada. Ir diante da porta e dizer para comigo: ‘Merda, mas como é que a gente vai fazer para desmontar esta coisa?’ Fazer isto... Crónicas Peugeot, de Michel Pialoux e Christian Corouge. Nesta mesma colecção aparecem nas livrarias pela mão da Deriva uma obra de Wittegenstein, «Observações sobre o Ramo Dourado de Fraser» nunca editado neste canto europeu e outro de Mikhail Bakhtin «Para uma Filosofia do Acto». A poesia e a narrativa acompanharam-nos durante os 15 anos de existência, com resultados tão desconcertantes e algo equívocos, como reveladores. Realça-se somente os que se considera terem sido os poetas verdadeiramente genuínos e que entenderam, desde o início, que um editor não é exactamente um promotor no mercado, muito menos do mercado literário ou de gestão de egos excêntricos. Aqui vão os que de uma maneira ou de outra deixaram registadas as melhores páginas e de doces lembranças em vários livros editados que marcaram uma época própria: José Ricardo Nunes, Ricardo Gil Soeiro, o já falecido Joaquim Castro Caldas com o seu «Mágoa das Pedras», Filipa Leal, Catarina Nunes de Almeida, Marilar Aleixandre, João Pedro Mésseder, Henrique Manuel Bento Fialho, António Alves Martins, Pedro Eiras, Maria Leonor C. Figueiredo, entre outros. A parceria com o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa deu-nos livrinhos da colecção Pulsar onde sobressaíram nomes como Sarrazac, Pascal Quignard, Antoine Compagnon, Anselm Kiefer, Carlo Ginzburg, Olivier Py, Jean-Claude Pinson, Stephane Mallarmé com o seu «Crise de Versos», Wyndham Lewis e os Manifestos Vorticistas. Também se editaram estudos literários sobre Annemarie Schwarzenbach, Max Frisch, Kafka, Coleridge ou Stevenson. «G. Agamben assinala que desde Miguel Ângelo o inacabamento é teimosamente exaltado pela arte e que se pode explicar este gosto por uma espécie de prazer derivado do fetichismo. Schlegel mostrava que, como as obras que admirávamos mais - quer dizer, desde a Renascença, as obras da Antiguidade - tinham chegado no estado de fragmentos, as obras dos modernos procuravam assumir esse estado logo ao nascerem, imputando o fascínio que exercem à fragmentação e julgando que estes pedaços, que evocavam totalidades indizíveis e ausentes ao provocarem o desejo do todo, ampliavam a emoção.» Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos, Pascal Quignard «A autodestruição foi sempre a finalidade mais íntima, a mais sublime da arte, cuja vaidade se torna desde logo percetível. Pois, qualquer que seja a força do ataque, e mesmo que tivesse chegado ao limite, a arte há de sobreviver às suas ruínas. (…) O Colégio de França convidou um artista plástico na esperança, presumo, de que vos fale de arte, vos informe acerca do que é a arte, demonstre a sua origem. Dir-vos-ei que não há definição da arte. Toda a tentativa de definição se desfaz no limiar do seu enunciado, tal como a arte, que não deixa de oscilar entre a sua perda e o seu renascimento. Nunca está onde contamos com ela, onde se espera apreendê-la e, referindo-me ao Evangelho segundo São João, direi: ‘Onde estiver, não o podemos alcançar’.» A arte há de sobreviver às suas ruínas, Anselm Kiefer Seguiu-se, pois, a denúncia com mais parcerias, agora com os livros editados com a edição portuguesa do Le Monde Diplomatique e com a Cultra, uma cooperativa cultural alternativa do Porto onde se editou Regina Guimarães com um libelo contra as chamadas «indústrias culturais», seja o que isso for. Mas é com uma intervenção, em Julho de 2016, no último livro que se editou pela Deriva, «Cidades Materiais», de António Alves Martins, que talvez esteja plasmada toda a génese, leitmotiv e o fim anunciado da Deriva. Não por acaso, reside nesta declaração tudo o que levou à sua criação e ao fim da editora e que exponho uma parte significativa: «Em meados dos anos 80, tínhamos todos 20 e tal anos. Miúdos da Faculdade de Letras que dizíamos abominar, sob a fórmula de palavrosas parábolas coimbrãs: ‘faça-se luz, incendeie-se a universidade!’. A verdade é que nos foi ensinado muito mais nos cafés adjacentes à Praça da República onde o prazer de falar, de conhecer e de debater era superior a tudo. Com algumas substâncias e segmentos aditivos que o facto de já terem prescrito, e apesar de uma louvável loucura que contrastava por vezes com imprevisíveis depressões, não me fazem aqui desenvolver e muito menos pormenorizar, por irrelevante. O agir concreto apareceu com o convite para fazer parte de um colectivo editorial da Centelha, e, mais tarde, da Fora do Texto. O espírito da revolta. In girum imus nocte et consumimur igni, o último filme de Debord realizado em 1978 e editado finalmente em 1981, com peripécias várias que, mais tarde, inclusive, levaram ao assassinato do editor da Champ Libre, Gerard Levobici (não foi o único), constrói a ideia do consumo e da alienação como alfa e ómega do capitalismo em fase de mutação para a pós-modernidade. Esta frase latina atribuída a Virgílio é a descrição real do que nos levou à deriva nocturna e à necessidade imperiosa de lutar contra a alienação do público que nos olhava de soslaio. Consumimos a noite e pegávamos-lhe fogo mesmo com acendalhas já usadas por outros. Creio não me enganar que entre blusões negros e echarpes negras ou canadianas verdes militares, construímos à nossa maneira um fogo permanente que nos devorou igualmente na ânsia da revolta e na dramatização do sem sentido de uma vida quotidiana que negávamos. Recusávamos o tédio. Recusávamos a mercadoria, recusávamos qualquer valor de troca. Preferíamos a poesia e o pensamento como as únicas vertentes que não se podem domar. E o amor. Esse, sempre presente no fogo quotidiano em que geríamos a noite em chamas. As chamas, essas, devoraram-nos? É possível, mas nas regras do Potlacht primitivo, este com coincidências inquietantes com o cristianismo também ele primitivo, quem perde ganha, quem ganha, perde. A noite consumiu-nos, sim, mas com a voragem da revolta romântica. (…) ‘Numa sociedade invertida, o verdadeiro é o momento do falso’. Isto foi dito em 1967 e corresponde a uma realidade já indesmentível e com contornos que o seu autor, Debord, provavelmente, não imaginaria na enorme dimensão espectacular que nos rodeia hoje. Assim, se nenhum movimento reivindicativo da arte revolucionária foi superado desde 1916 com Dada, esta tornou-se uma mera mercadoria, que vale o que vale consoante o valor das trocas. Nos anos 80, vivia-se por toda a Europa a ressaca dos anos de chumbo criados por Andreas Baader e Ulrike Meinhof que proclamava em livro ‘vocês falam do tempo, nós não!’ e pelas Brigadas Vermelhas de Renato Curccio na Itália, estas últimas teleguiadas, como se soube, pela polícia secreta. Tudo isto gerou uma impossibilidade poética, uma forma de ver a política e de destinar uma vida quotidiana não marcada pelo tédio e pelo aborrecimento, ou, se quiserem, pelas cadeias infernais do trabalho. Mas como promover isto mesmo numa sociedade alienada pelo medo, pela vingança dos anos pós-Prec e pelo espartilho terrorista no Portugal mesquinho dos anos 80 e da recuperação yuppie? Foi a altura também dos anos criadores e libertadores do rock com o aparecimento de Johnny Rotten, dos Clash, de um Lou Reed já sem os Velvet Underground, do Bowie tornado pop, de Ian Curtis dos Joy Division e depois com os New Order, de Iggy Pop, de trautearmos Jim Morrison pelas ruas desertas de Coimbra e aclamando o Jazz, recuperando para nós o be-bop e o free como forma de dizermos: ‘Falem do tempo, falem do tempo, nada temos a ver convosco!’ Aderimos à arte contemporânea e às possibilidades do vídeo, do teatro e da performance sendo que estas foram, exceptuando alguns, poucos, casos rapidamente recuperados. Identificávamo-nos pela música e pela deriva. A deriva consubstanciada todos os dias numa cidade que cada vez mais se tornava um labirinto de cimento corbusiano. A deriva que aqui se fala é a de Thomas de Quincey que, nas suas «Confissões de um Opiómano Inglês», tradução forçada, diga-se, afirmava haver uma rede subterrânea, marginal, na cidade de Londres, não cartografada pela polícia e pelas instituições políticas. Era terreno livre. Os dadaístas, os letristas e os surrealistas e muito mais tarde os situacionistas praticaram-na na forma de desconstrução da palavra e da deambulação livre em corredores libertários. Na construção de situações irreversíveis. Mas sem se superarem. Precisamente: o verdadeiro aqui, não superou o falso. Assim, toda a deriva que realizámos, muitas vezes sem sentido, nas ruas e becos nocturnos, só teve consequências na construção de mercadorias irrevogáveis: os livros e as ideias que eles trazem. O teor do que são feitos. A forma. A cadência e a recusa da «inovação». Até porque, sabemo-lo, quando o patrão exige inovação, o escravo honesto é o primeiro a proclamá-la.» Nunca quisemos aderir à escravatura. António Luís Catarino, Abril de 2024