terça-feira, junho 11, 2024

«Caruncho», Layla Martínez


Antígona, Março de 2024. Tradução e posfácio de Guilherme Pires
Há quem ache que já não há luta de classes. Há quem pense que sim, que existe. Há quem admita que, no futuro, a luta de classes será entre robots e humanos numa cena qualquer trans-humana, pós-humana ou essencialista. Vão por mim: ao acabarem de ler este «Caruncho» (o castelhano «Carcoma» é muito mais expressivo que o português «caruncho»), de Layla Martínez, podem ter a certeza que a luta de classes é muito mais profunda do que se pensa, agora que o liberalismo a conseguiu apartar das mentes democráticas e transformar-nos a todos em colaboradores, empreendedores, masters, prontos a fundar uma startup de gabarito muito multinacional, porque o espaço português será pequeno demais para as expectativas e consequentes posses advindas do lucro que cairá aos roldões nas contas bancárias com juros bonificados para ex-trabalhadores. Hoje, o horror dos trabalhadores é sê-lo. 

Só que não. Layla Martínez é espanhola, madrilena e com raízes em Cuenca, Castela La Mancha. Nascida em 1987 é ainda muito novinha para se meter nestas coisas ditas e reditas nos 60 e 70. Mas meteu-se e bem. Com violência, com frontalidade, sem peias, veio repor a família no lugar que lhe pertenceu desde sempre numa pequena aldeia onde a Guerra Civil foi mais intensa e mais cruel. Os espanhóis não brincam à política, como se sabe. Muito menos com a questão social. Não esquecem, nem perdoam. E a vida de quatro gerações é perpassada a pente fino, com uma síntese literária notável, um apuramento difícil de conseguir mesmo em escritoras/es mais experimentadas/os (alguns e algumas tornaram-se insuportáveis). Uma neta madrilena (ah, talvez da classe média, diz-se agora), com estudos, estabilizada, indaga a vida de uma bisavó e tem uma relação muito chegada à sua avó que ama e odeia, esquece-se da mãe por vezes, é acusada de um crime que possivelmente não cometeu e a luta brutal de quem viveu humilhado durantes séculos vem ao de cima como gasolina numa fogueira, metáfora para este livro incrível. A violência de uma guerra difícil de esquecer, os cadáveres ainda em valas que alguns sabem ainda existir, mas que se calam em silêncios cúmplices, com o ódio comum, colectivo e individual. Inultrapassável. Entra-se pela pele de cada personagem numa casa que se desfaz aos poucos, que não se quer reconstruir para que a memória não se perca. Dos vencedores e dos vencidos. A luta de classes por osmose, de geração para geração, e que não se dá por ela. E isto nada tem a ver com a guerra por que passou Espanha entre 1936 e 39. Tem, isso sim, com a humilhação, violência, prepotência generalizadas dos mais poderosos sob os mais fracos que se defendem, nem que seja com rezas e santos sacrificados também eles violentamente. E também com armas. Mas que no momento vital do confronto entre classes vem à tona com um ódio inusitado, sem qualquer freio. As pessoas, nas nossas sociedades contemporâneas, passam, cruzam-se entre elas em grandes cidades, talvez como Madrid, e nem pensam que algumas (talvez demasiadas) carregam histórias terríveis de antepassados mortos ou desaparecidos que teimam em viver ainda com os netos e bisnetos e que isso terá necessariamente consequências de todo o tipo. Essa «passagem» deixa marcas e elas permanecem como cicatrizes prontas a abrir, ou a esconder como se fosse uma tatuagem mal feita.

Ainda falta muito para acabar o ano de 2024, anos de todos os perigos como sabemos. Mas talvez seja este um livro que não quero esquecer.