segunda-feira, setembro 11, 2023

«Auto-de-Fé», Elias Canetti

 

Cavalo de Ferro, 3ªed.2023, Tradução de Luís de Almeida Campos
Livro editado em 1935, escrito desde 1929 em Viena e terminado em Berlim, e que estava para ter outros títulos entre os quais «Cegueira», «Kant incendeia-se» ou «Brand». Elias Canetti escolheu «Auto-de-Fé» que, contudo, teria a ver sempre com o fogo. Fogo e livros. Livros estes que eram a obsessão louca de Peter Kien, a personagem «homem-livro» que acaba devorado pelo incêndio que provocou à sua enorme biblioteca, perecendo com ela no final do romance. Aliás, como nota avulsa, deve dizer-se que a palavra «kien» é também a «madeira resinosa» que se usava para atear fogueiras. Ironia pérfida é o facto deste livro ter feito parte dos incêndios de publicações que iluminavam as noites macabras das marchas nazis de archotes a partir de 1933 e que o consideraram «degenerado». Canetti exilou-se então nos Estados Unidos para não morrer às mãos dos nazis como judeu sefardita que era. Voltando à personagem que enforma «Auto-de-Fé», Peter Kien era o protótipo de o «Homem-livro», aquele que vivia para eles e neles só encontrava a «verdade», ignorando tudo o resto incluindo os vícios e, talvez, as virtudes da humanidade. Alto e magro, misógino, egocentrado, professor universitário que desprezava os alunos deambulava por Viena com uma pasta, passeando os livros que escolhia nesse dia para o fazer. Dormia num divã com eles. Contudo, casa-se com a governanta que sentia tratar bem dos livros...
Não me ocorre uma «descrição» do único romance de Canetti e que, junto com outros, o levou ao prémio nobel de 1981, e que seria forçosamente redutora tal a profundidade filosófica com que o ilustrou. Diz o autor, talvez referindo-se ao processo de escrita de «Auto-deFé» que «A crueldade daquele que se obriga a admitir uma verdade atormenta-o sobretudo a si mesmo: o escritor violenta-se a si próprio cem vezes mais que o leitor.(pág.553)» Não pretendendo, sequer, ousar desmenti-lo posso todavia afirmar que o leitor não sai incólume da leitura desta obra clássica. Estão lá plasmadas a alienação, das massas sim, mas também do indivíduo que mergulha no mundo dos livros e que os considera mais humanos que os humanos que desconhece, a loucura, a religião (todas elas sem agravo), a psiquiatria ou a mesquinhez quer dos poderosos, quer dos subordinados. Todo este exercício literário sobre a alienação remete-nos já para os livros de ouro de Canetti como «Massa e Poder» e «Língua Resgatada» cuja leitura se tornou agora obrigatória para mim, se bem que já tenha lido, há demasiado tempo e julgo que sem o instrumento poderoso da idade, o primeiro deles. 

«A ciência tinha-lhes inculcado uma fé cega na causalidade. Personagens convencionais, cingiam-se fielmente aos costumes e opiniões da maioria. Procuravam o prazer e interpretavam tudo e toda a gente em função dessa procura: uma mania da época que dominava todos os espíritos sem dar grandes resultados. E por prazer entendiam, naturalmente, todos os vícios tradicionais que o indivíduo,. desde que existem animais, pratica com um afinco que não desfalece.
A verdade é que nada sabiam daquela força motriz da história, muito mais profunda e autêntica: o impulso humano para se fundir numa espécie animal superior, a massa, e perder-se tão irremediavelmente nela como se nunca tivesse existido um homem isolado. Porque, além disso, eram educados, e a educação é uma arma defensiva do indivíduo contra a massa que transporta dentro de si.
Não menos que a luta pela fome e pelo amor, praticamos a chamada luta pela vida com o fim de aniquilarmos a nossa massa interior. Mas esta fortalece-se tanto, sob certas condições, que obriga o indivíduo a a gir de forma desinteressada e até contra os seus próprios interesses. A humanidade existia como massa já muito antes de ter sido formulada e diluída em conceitos. Como um animal monstruoso, selvagem, ardente e exuberante, a massa ferve e agita-se no mais profundo do nosso ser, a maior profundidade que as nossas próprias Mães. É, apesar da sua idade, o mais jovem de todos os animais, a criatura essencial da Terra, a sua meta e o seu futuro. Mas nada sabemos dela e vivemos, supostamente, como indivíduos. Não obstante, a massa abate-se às vezes sobre nós como uma maré espumante, como um oceano furioso em que cada gota permanece viva e aspira ao mesmo. Passado pouco tempo dispersa-se, devolvendo-nos ao nosso estado habitual de pobres diabos solitários. E então torna-se-nos inconcebível recordar que alguma vez chegámos a ser tanto, tão grandes e tão «Uno». «Doença», dirá um comentarista inteligente; «a fera do homem», atenuará um humilde cordeiro, sem suspeitar quão perto da verdade se encontra o seu erro. Entretanto, a massa prepara um novo ataque de dentro. Até que um dia não volte a dispersar-se, talvez num único país, no princípio, e dali comece a propagar-se para todos os lados até que ninguém ponha em dúvida a sua existência, porque já não haverá mais Eu, nem Tu, nem Ele, mas apenas ela: a Massa.» (pags. 476,477)

Este trecho de «Auto-de-Fé» foi escrito em 1935, lembrando-nos que estava na forja, pelo menos, desde 1929, ano de todas as acções de massas principalmente as do fascismo e do nazismo contra os quais Elias Canetti lutou, até de armas na mão, como eles nos conta no Posfácio de 1973 a uma edição vienense deste livro. O caso deve ser descrito aqui: numa manifestação de esquerda assassinaram nove operários em Viena. Os jornais, os jornalistas e escritores da altura ou, na sua maioria, defenderam os assassinatos ou, mantiveram-se cobardemente calados, menos Karl Kraus, evidentemente; o veredicto do julgamento absolveu os perpetradores e julgou até necessário esse crime. A resposta foi espontânea dos operários que, sem os seus chefes conciliadores social-democratas, atacaram e incendiaram o Palácio da Justiça de Viena. A polícia fez então 90 mortes entre os operários onde se encontrava Elias Canetti, também ele em protesto. Ao seu lado estava alguém que, exuberante, gritava «Foram-se os processos! Todos queimados!». O jovem Elias Canetti não se conteve e violentamente retorquiu-lhe: «Há dezenas de pessoas mortas e você só pensa nos processos?» (no Posfácio). Significativo.

De qualquer modo, e pelo que escrevi, não pensem os liberais e os «neos» que os acompanham que Canetti é um deles. Decididamente, não. Antes pelo contrário: de matriz claramente marxista, não fosse da geração nobre de entre guerras de Viena e Berlim, conheceu Karl Kraus a quem não regateou influências, o desenhador George Groz de quem foi grande amigo e Isaak Babel, para além de Brecht que o «adoptou» como seu discípulo e, mais tarde, depois de ter ultrapassado alguma desconfiança acerca dos escritores vienenses não tão frontais e hiperactivos como os de Berlim, tornou-se íntimo de Musil e de Broch. Há um facto curioso e que tem a ver com Brecht: na minha leitura de «Auto-de-Fé» deu-me para pensar na possibilidade de uma adaptação grandiosa para o teatro desta obra à maneira de Kraus ou de Brecht; aquela obra, dividida em três grandes capítulos, não era de todo impossível e não sei se alguém o tentou ou, sequer, se era um desejo de Canetti realizá-la. Já com Thomas Mann (mais uma achega para eu detestar o homem) as coisas não correram tão bem. Durante muito tempo «Auto-de-Fé» esteve parado na gaveta por recusa de o publicar por editores medrosos, como Suhrkamp por exemplo, e quando Canetti o enviou para apreciação a Mann este recusa lê-lo, visto que não teria muito tempo para o fazer. Quando foi editado em Viena e o êxito começou a mostrar-se como devia, este tem o desplante de o considerar «tão bom como o ''Henri Quatre'' de Einrich Mann, seu irmão» (!?). Pergunto: alguém conhece este última obra ou o autor? Pobre Thomas Mann! Elias Canetti morre em Zurique, em 1994. Deixou-nos um clássico impossível de não ler.