sexta-feira, julho 21, 2023

«Nesta Grande Época», Karl Kraus

 

Relógio d'Água, 2018. Selecção, tradução, prefácio e notas: António Sousa Ribeiro
A sátira é uma das características mais marcantes de Karl Kraus. Austríaco, nascido em 1874 sob a bandeira do Império Austro-Húngaro, vai para Viena muito cedo onde estuda Filosofia e Literatura Alemã. Ficou, contudo, conhecido pelos seus artigos no Die Fackel, O Archote em português, que, a partir de 1899, publica quase 1000 números, analisando crítica e muito causticamente a sociedade austríaca e alemã. Acaba por ser o único redactor, dispensando todos os colaboradores e querendo inclusive acabar com todos os seus leitores. Como projecto, não está mal, diga-se, mas ajusta-se bem à personalidade de Karl Kraus que tudo fez para denunciar a hipocrisia da época que viveu e principalmente o período entre as duas guerras e a ascensão do nazismo que combateu, mas que não chegou a ver a consolidação total do seu poder, visto que morre em 1936. Os seus livros foram igualmente queimados pelos nazis, nas tais fogueiras «regeneradoras». 

António Sousa Ribeiro escreve um prefácio esclarecedor sobre Karl Kraus. Retiro dele o seguinte trecho: «O espanto é também a incredulidade e horror perante o que vai acontecendo e vai sendo trazido para o interior do discurso da sátira sob a figura fundamental da indignação. Mas a indignação, que, segundo a fórmula de Juvenal - fecit indignatio versum -, é o que dá forma ao verso satírico, não basta, é necessário justamente, que seja a indignação de um mestre, de um mestre da palavra ou melhor, na inversão do próprio Kraus, de um ''servidor da palavra'', isto é, de alguém capaz de sondar as possibilidades da linguagem até aos máximos limites». Mais à frente o prefaciador afirma: «Existe sátira onde existe legítima suspeita sobre a normalidade social, sobre o senso comum aceite, com os seus valores e os seus rituais. (...) Como é bem explícito desde o início, crítica da linguagem significa, para Kraus, antes de mais, crítica da imprensa, enquanto lugar por excelência de mercantilização do discurso.» (páginas 10 e 11). Portanto não usa a sátira quem quer. Usa-a quem pode e trabalha a linguagem para atingir esse estado puro de apontar a contradição essencial de uma sociedade vista sob todos os aspectos. É raro ver e ler textos tão bem escritos como vemos em «Nesta Grande Época» ou talvez recuando a Rabelais ou Swift os encontremos com tal fulgor.

«A minha religião é acreditar que o manómetro já chegou aos 99. Em toda a parte vão penetrando os gases libertados pelo pus do cérebro universal, a cultura está sufocada e, no final, uma humanidade morta jaz junto das suas realizações, cuja invenção exigiu tanto do seu espírito que não lhe sobrou nenhum para as usar. Fomos suficientemente complexos para construir a máquina e somos demasiado primitivos para deixar que ela nos sirva. Conduzimos um tráfego universal por cérebros de via reduzida.» (pág.22)

«Cansado da Guerra - é a mais estúpida de todas as expressões de que esta época dispõe. Estar cansado da guerra quer dizer estar cansado do assassínio, cansado da pilhagem, cansado da mentira, cansado da estupidez, cansado da fome, cansado da doença, cansado da sujidade, cansado do caos. Alguma vez alguém enfrentou tudo isto feliz e contente? Assim, o cansaço da guerra é, na verdade, um estado de que não tem que haver salvação. Cansado da guerra tem de se estar sempre, não depois, mas antes de ter começado a guerra. O cansaço da guerra não deve fazer que a guerra seja terminada, mas sim que não haja guerra. Os estados que, no quarto ano de fazerem a guerra, estão cansados da guerra não mereceram nada melhor do que - aguentar a pé firme!» (pág.143)

«O progresso, que tem a cabeça para baixo e as pernas para cima, esperneia no éter e assegura a todos os espíritos rastejantes que domina a natureza. Molesta a natureza e diz que a conquistou. Inventou a moral e a máquina para expulsar a natureza da natureza e do ser humano e sente-se aconchegado numa arquitectura do mundo sustentada pela histeria e pelo conforto. Celebra vitórias de Pirro sobre a natureza.» (pág.64)

Neste livro, ou melhor, nesta antologia de artigos do Die Fackel, a sátira engloba toda a civilização ocidental e não só o limite germânico. Abrange temas cuja sátira se debruça sobre a situação da mulher, da relação das máquinas, da tecnologia, do chamado progresso com a natureza e com a humanidade, ataca o racismo com os linchamentos de negros nos EUA e a sua «desculpa» pela imprensa austríaca, a própria imprensa não sai daqui, nestes artigos, muito bem tratada pela sua queda para impor o medo e a política de domínio sobre as consciências e, principalmente, a guerra e quem a produz são tema recorrente em Kraus que assistiu ao massacre da I Guerra e vê preparar-se uma segunda. Não que a tivesse visto e assistido a ela, mas que não o impediu, quer de referir e citar abundantemente o apocalipse bíblico, quer de criar a peça monumental de teatro «Os Últimos Dias da Humanidade».

António Luís Catarino