quarta-feira, julho 26, 2023

«George Orwell, uma biografia política», John Newsinger

 

Antígona, 2010, Trad. Fernando Gonçalves
Não é um panegírico a George Orwell, como se poderá pensar, mas sim uma biografia crítica. Muitas vezes, contudo, John Newsinger parece «desculpar» algumas atitudes mais contraditórias ou mesmo pueris de Orwell, cuja simpatia pela sua causa é evidente para muitas gerações, deste autor falecido precocemente em 1949. Eu pertenço a essa gente, confesso.

No entanto ao ler esta biografia ficamos com uma sensação estranha e que se aloja em nós pouco a pouco. Ninguém exige que todos os autores sejam coerentes no sentido de uma absoluta entrega a uma única estratégia política ou literária, mas estamos perante um caso extremo com Orwell. Há três questões que não largam este nome: Espanha, Estalinismo e Socialismo. Vejamos: oriundo da classe média alta inglesa estuda em Eton para funcionário colonial o que o leva à Índia e à Birmânia onde se inscreve na polícia colonial inglesa, conhecendo e praticando, inclusive, a repressão brutal do Império sobre os habitantes das colónias. Farta-se e demite-se da polícia, tornando-se militante anti-imperialista. Mostra-se implacável para com a elite, classes dominantes e ricas inglesas e promove artigos que defendem a nacionalização de campos, escolas, minas, transportes, correios, etc. sem indemnizações. Ainda não é socialista, contudo. Anda pela ala esquerda do trabalhismo e junta-se a companheiros criando um partido (ITP, acrónimo de Independent TP) que pretendia substituir o PT tradicional e que foi votado ao fracasso. Entretanto rebenta a guerra de Espanha, é ferido na frente de Aragão, safa-se de ser preso por agentes da GPU que o acusam de trotskismo, por ter pertencido ao POUM que, por sua vez, é alvo da crítica do próprio Trotsky. Escreve Homenagem à Catalunha e muito mais tarde Recordando a Guerra Espanhola, com tradução de Júlio Henriques, em que se mostra muito mais realista com as causas da derrota das forças revolucionárias face a Franco, ajudado por italianos, marroquinos e alemães. Volta para a Inglaterra e escreve Na Penúria em Paris e Londres, retratando a miséria dos mendigos e dos sem-abrigo. Escreve igualmente sobre a classe operária inglesa, vivendo com os mineiros durante meses, sentindo que o ódio de classe nunca o fizeram reconhecer como um «igual», ao contrários dos mendigos que o aceitavam plenamente. Isto talvez o tenha levado a concluir que em 1940, em plenas vitórias nazis na Europa, a Inglaterra poderia ser palco de uma verdadeira revolução socialista anti-soviética, visto que toda a estratégia de Estaline na Guerra Civil de Espanha e no tão famoso, como infame, pacto Hitler-Estaline o fez nunca aceitar as teses dos Partidos Comunistas europeus que considerava alinhados pela estratégia russa. Daí ter-se oposto firmemente às Frentes Populares, o que não sendo propriamente coisa má, já colidiria com a sua proposta de uma constituição de uma União de Estados Socialistas Europeus, em que a Inglaterra poderia ser a guia natural. Aqui entra um nacionalismo estranho a que Orwell deu o nome de «patriotismo revolucionário». Contra o Partido Trabalhista, contrapõe no final da guerra a criação de um verdadeiro Partido Socialista que, como sabemos, nunca teve relevância política. 

Relativamente à A Quinta dos Animais e a 1984, os dois mais populares livros de Orwell, sabemos que a crítica implícita quer num, quer noutro, é tanto ao estalinismo, como ao capitalismo, o que não impediu a Guerra Fria de os ter usado como arma de arremesso contra a URSS e países de Leste, sendo inclusive os dinheiros da CIA a financiarem o filme de animação de A Quinta dos Animais. Nada que nos admiremos, sabendo de antemão os métodos da CIA e o facto de Orwell já não se encontrar entre nós, não se podendo, evidentemente, defender. Aliás, deve dizer-se que essa (im)possível defesa não versaria somente os filmes (mal) adaptados das suas obras, mas para o mar de calúnias em volta do seu nome.

Mas, talvez, a maior contradição de George Orwell resida em duas questões que nunca soube superar: o seu crédito nas classes médias britânicas que queria conquistar para a revolução socialista, ao mesmo tempo que afirmava que eram passíveis de apoiar o fascismo se lhe dessem a escolher entre este e o socialismo e o tal nacionalismo britânico que nunca soube ultrapassar, pensando na criação de uma revolução ou reformas socialistas pacíficas com características particulares inglesas baseadas na «democracia» que seria o alfa e o ómega do «espírito britânico». Antes, tinha afirmado, em artigos no Tribune, que não poderia existir uma revolução socialista sem que as classes dominantes e a classe média medrosa de expropriações não resistissem violentamente. Não podemos deixar igualmente de sorrir quando Orwell e outros socialistas tentaram fazer da Home Guard, uma guarda armada especial de defesa civil de não incorporados na guerra em caso de invasão alemã e que chegou a ter 1 milhão de efectivos, uma espécie de brigadas iguais às do POUM na guerra civil de Espanha e que no momento ideal virariam as armas para as classes possidentes britânicas, implantando o verdadeiro socialismo. Claro que os mais aguerridos e a gente de esquerda foram de imediato afastados pela hierarquia militar sem qualquer rebuço dos demais! Primeiro contra os alemães e tratar dos nossos, depois, talvez, a revolução. Vamos ver...

Mas, mesmo com estas contradições e alguns sonhos utópicos que fazem parte da ideia orwelliana, não deixamos de sentir a simpatia de um homem que deu a vida por um socialismo que queria ver implantado em toda a Europa. Quem não simpatiza com Orwell?

António Luís Catarino