segunda-feira, abril 18, 2022

« A Retirada dos Dez Mil », de Xenofonte. Tradução do latim e versão de Aquilino Ribeiro, prefácio de Mário de Carvalho

 

Não gostaria que encontrassem nesta ficha de leitura algum tipo de insolência intelectual, mas é minha convicção, cada vez mais séria, que a consulta dos clássicos nos ensina muita coisa, principalmente as causas das boas e más excentricidades humanas e mesmo dos povos. Esta edição da «Anábase» de Xenofonte (para os cépticos será um pseudo, mas é deixá-los dizer, até para dar um ar de sabedoria de copo de branco fresco na mão) é enriquecida com um prefácio de Mário de Carvalho e uma introdução do próprio Aquilino que também o traduziu a partir do latim e versou-o para a língua portuguesa. Já lá vamos. A própria tradução do título faz com que Aquilino nos tenha prevenido da sua infidelidade, mas a verdade é que fica assim muito melhor. Um dos grandes autores do século XX português, segundo as palavras certas de Mário de Carvalho que nos descreve tão bem o sentir grego, do soldado que vota, plebiscita, mata, fere, escraviza, rouba, pilha, até ao comandante e capitães que só decidem depois do plano seja votado pela turba livre de vontades, mas que, ao tomá-la (a decisão) todos lhe seguem sem pestanejar. O grego ama a liberdade, os seus deuses, a quem oferecem inúmeros holocaustos e hecatombes, as suas superstições escondidas nas entranhas dos animais sacrificados, as suas polis. A escrita de Mário de Carvalho leva-nos a perceber este ardor pela vida e também o seu desprezo pela morte justa.

Aquilino Ribeiro, está em Paris em 1938, na Rive-Gauche, supõe-se na gandaia (para usar um termo dele) e a escrever muito, a debater ideias. Conhece M.Tournier, orleanista, católico fervoroso, vive pobremente, de uma cultura enorme. É ele que, após um refrega em que Tournier se encontrava e por ter dado uma paulada a um tipo que o importunava, levou Aquilino a dar um enxurro de porrada ao desgraçado que teve a ousadia de responder com um murro a Tournier. Este, dias mais tarde, oferece-lhe «Anábase» que, segundo as palavras do mestre português é uma «deliciosa, de linfa pura e estreme, colhida com discutível escrúpulo pelas mãos de mil e um tradutores.» A edição que Tournier lhe deu foi uma tradução latina de Joannes Leunclavius, tendo sido comprada por «cinquante sous».

«A Retirada dos Dez Mil», de Xenofonte, tem lugar após a guerra de 29 anos do Peloponeso entre Atenas e Esparta, com a vitória desta última e a decadência gradual da imperialista Atenas, que erradamente se embrenhou na Liga de Delos que exerceu um abusivo domínio sobre outras polis. Milhares de soldados encontravam-se desempregados e sabendo somente guerrear deu-lhes para aceitar um projecto manhoso do sátrapa persa da Lídia, o famoso até hoje Ciro. Manhoso, porque não disse de início ao que ia. O seu projecto megalómano era retirar o rítulo de imperador ao seu irmão Artaxerxes II, no centro da Pérsia, e levando milhares de mercenários e soldados gregos ao engano. É evidente que a sua glória caiu por terra. Venceu a batalha contra o irmão, mas pereceu.

O que ficou para a História, não foi Ciro, foi a retirada de 10 mil soldados gregos de volta à Grécia, às suas pólis, em grande parte sob o comando de Xenofonte, amigo de Sócrates. Esta retirada, maravilhosamente contada por Aquilino, está nos anais das principais escolas militares como sendo uma das mais bem sucedidas do mundo. Outras há, como a retirada de Massena, na 3ª invasão francesa (nos 200 anos desta efeméride não foi utilizado, por Portugal, o termo «invasões», mas sim de «guerras peninsulares» o que hoje não deixa de ser irónico para bom entendedor), ou como as retiradas, bem mais atabalhoadas e cobardes, de Napoleão e Hitler na Rússia. E já que estamos a falar de retiradas marciais, penso que West Point não estudou bem as lições de Xenofonte aos seus pupilos, já que nos lembramos bem das fugas americanas no Vietname, na Somália ou, agora, no Afeganistão. Mas qual o verdadeiro interesse de ler uma retirada clássica como esta? Porque em época de guerra, como a de hoje, uma pessoa honesta compreende o que está na base de um enorme conflito: a guerra deverá sempre ser evitada. Xenofonte prefere, com os seus soldados, a negociação, a alimentação e a manter a vida deles ao ímpeto destruidor de um avanço sangrento. Só opta pela guerra, pela pilhagem ou pelo castigo pela escravidão, quando a hostilidade dos vários povos por onde passam até ao Ponto Euxino e depois ao Bósforo não consegue ser ultrapassada. E mesmo no mar, muitas vezes recorreu à pirataria. Os limites humanos estão sempre postos à prova e nessas condições as prédicas (os gregos amam a palavra), em busca da liberdade e de justiça, por parte de Xenofonte aos seus capitães, aos soldados e aos pensamentos para si próprio fazem parte de uma verdadeira tragédia ou epopeia comparada à Ilíada e, desconfio eu, superior à Odisseia. E foi assim em quinze meses, em avanço e retirada, percorridas mil cento e cinquenta e cinco parasangas (cada, 5,520m). Contei 25 povos em cujos territórios os gregos atravessaram, não sem que houvesse igualmente mudanças políticas ao nível do poder. O povo esse, continuava a pagar tributos a quem quer que fosse.