Estudo: Mário-Henrique Leiria
Tenho comigo dois volumes da chamada «Obra Completa» de Mário-Henrique Leiria (M-HL) coordenado, se assim se pode dizer para quem se apresenta com uma «introdução, organização e notas», por Tania Martuscelli. O volume I é a ficção de M-HL e o volume III é composto por «manifestos, textos críticos e afins». O volume II apresenta a sua poesia publicada. Debrucei-me mais sobre o último volume já que a ficção e poesia conheci-as e devorei-as a partir de 1973. Aliás, deve dizer-se ''devorámos'', assim na primeira pessoa do plural, visto que houve uma geração inteira que leu, comentou, riu e lutou com os «Contos do Gin Tonic» e o sucedâneo «Novos Contos do Gin» debaixo do braço.
O volume III é uma tristeza que quero partilhar convosco. Se ousamos vibrar com os manifestos de 1949, data da Exposição Surrealista de Lisboa, e ir por aí fora com os textos de irreverência absoluta, pelo menos até 1952, destacando-se precisamente Mário-Henrique Leiria por ser particularmente violento e verrinoso para com o SNI fascista e companhia, em que dispara para todos os lados inclusive para os neo-realistas, não se compreende que neste volume se coloque, no mesmo pé, as suas cartas de amor. Não dá, assim como não compreendemos a falta de datação das várias missivas que podem ser consultadas logo no índice: a grande maioria apresenta o frio «s/d» quando uma investigação mais aprofundada poderia ser relativamente fácil a inclusão de uma data aproximada e a conjuntura necessária para certos factos relatados pelo autor e que são do conhecimento de todos. Pelo menos no plano da política e da História. Faltam as notas necessárias.
Sou, em princípio, contra a publicação de cartas privadas de autores conhecidos. Por muitos motivos, mas principalmente porque é um pouco velhaca, esta prática. Ainda há pouco estive a consultar numa livraria as cartas de Paul Celan e Ingeborg Bachmann, mulher de Max Frisch. Completa falta de interesse ou de emoção. O mesmo para tantas outras epistolografias célebres, sendo a de Fernando Pessoa a Ofélia a mais conhecida. Quanto a Mário-Henrique Leiria as suas cartas são de uma tortura imensa que bem podia não ser revelada. Para quê saber o que a escrevia à Isabelinha, a Maruska, a «menina do sorriso bonito»? Ou ainda, as cartas que revelavam uma completa depressão perante o seu divórcio com Dietlind? Absolutamente nada. Ficamos com um sabor amargo na boca e ainda mais quando reparamos que os herdeiros e família de M-HL não foram sequer consultados como vem registado em nota introdutória. Por mim dispensava o conhecimento das cartas. Tenho a certeza que o autor também não aprovaria, mas isso é outra história mais etérea e nada terra a terra.
Por outro lado, já ficamos com a pulga atrás da orelha com alguns factos que podiam ser motivo para uma exaustiva biografia de M-HL, nomeadamente a sua relação com o PCP e com Manuel Sertório, a relação com Álvaro Guerra, por exemplo, e com os comunistas brasileiros que o levou à prisão e tortura no Brasil., tal como a sua relação com Cuba dos «guerrilheiros barbudos», sabendo nós que ele esteve na ilha a convite da Associação de Amizade Brasil - Cuba, isto em 1962. Há igualmente um vislumbre de dissensões e lutas internas dentro do surrealismo/abjeccionismo português que podemos sentir nas cartas, principalmente a sua relação com António Maria Lisboa e com Mário Cesariny, mas principalmente com o primeiro deles. E Londres, Paris, Bruxelas, Checoslováquia, na Marinha Mercante e mais as minas de carvão, somando-se o Brasil e São Paulo, a fome, a falta de dinheiro, as relações fátuas. Depois, há certas passagens em cartas que, à falta de uma biografia séria, nós só podemos supor; assim é com a referência à guerrilha da Guerra Civil de Espanha (acho-o demasiado novo para ter participado nela) ou no «maquis» da Resistência francesa em que diz ter participado. De qualquer maneira, sentimos que esteve envolto em armas e que chegou a estar preso em Caxias, também. A sua raiva à PIDE e a Salazar é bem notória em certas passagens, mas tudo entremeado com juras de amor à Isabelinha a «Maruska de olhos tristes» e a depressões brutais. É uma grande salganhada é o que é. Precisa-se, pois, de um biógrafo à altura.
Seria muito bom para todos que, ao menos, estes volumes sirvam para um conhecimento mais aprofundado pela vida extraordinária deste homem e deste escritor surrealista (que o deixou de ser em 1953) e tudo!