domingo, julho 11, 2021

Acerca de «O Grande Cidadão» de Virgílio Martinho


A literatura portuguesa tem pouco de distopias. Os nossos autores ou não deram grande atenção a esta corrente literária ou o país, ele próprio distópico, tirou qualquer veleidade de construir uma ultrapassagem da riquíssima realidade que nos envolve desde há séculos. Considerando Portugal uma distopia, isso pode limitar imenso a imaginação de um escritor que se queira aventurar numa ficção deste tipo. Vem isto a propósito porque acabo de ler «O Grande Cidadão» de Virgílio Martinho, vindo a público no ano de 1963 e com 2ª edição no ano de 1975. Não brinco quando digo que é um romance digno de figurar em lugar de destaque na nossa literatura e claramente conseguido. 

E fico perplexo quando leio numa crítica de Miguel Real na revista «A Ideia», número 81 a 83, de 2017 (portanto actual), a este mesmo romance a afirmação muito doutoral e anacrónica de que era uma inflexão do autor para o neo-realismo coisa, no mínimo, de se esconjurar de imediato, não tivesse Virgílio Martinho, e para sustentar tal pecado, convivido com Alves Redol, Aquilino, Joaquim Benite, Manuel da Fonseca e outros culpados. Ou seja, tendo amigos neo-realistas e tendo o desplante de serem subalternas, marginais e proletárias as suas personagens nos variados livros publicados, o autor não se livra do epíteto «neo-realista», quando não ligado umbilicalmente ao Partido Comunista Português, como afirma Miguel Real no artigo, autor este também conhecido pela publicação de romances históricos, estes muito menos distópicos, evidentemente. E para mais, com personagens históricas impolutas, neutrais, fruto dos seus tempos, ou seja, dos passados evos. A jogar pelo seguro. Sinceramente julgava isto ultrapassado...mas não, a coisa continua.

Miguel Real fala desta inclinação pecadora devido a uma carta de Pedro Oom a Mário Cesariny, datada desse mesmo ano de 1963, em que dá conta de um «desvio» de Virgílio Martinho para o neo-realismo. Sabendo nós que Virgílio Martinho foi surrealista com António José Forte, António Maria Lisboa, Mário Cesariny e Pedro Oom, entre muitos outros, frequentador do Café Gelo e Royal, não nos admiramos do teor desta carta se a circunscrevermos a uma provocação, entre muitas outras, que eram mais que familiares entre os surrealistas. Esta afirmação de Miguel Real vale o que vale, mas não gosto de ser tomado por parvo e por mim este tema morreria logo, porque, por si só, não tem qualquer importância. Mas vejamos: é que data igualmente de 1963 a edição, pela Minotauro, da antologia «Surrealismo/Abjeccionismo» de Mário Cesariny. E o que vai ele antologiar de Virgílio Martinho? Um trecho do mesmo «O Grande Cidadão» que era mote para tal desvio. E até Miguel Real nota nesse mesmo artigo que após 1963 Virgílio Martinho participa em várias surrealidades em exposições e antologias várias e isto até 1974 e depois. Por exemplo, a sua presença em «Coisas» da & etc. antologia de Vítor Silva Tavares, juntamente com o mesmo Pedro Oom e outros também dificilmente catalogáveis (como Adelino Tavares da Silva, Baptista-Bastos, etc.).  E depois há incongruências e incorrecções no mesmo artigo: não são 10 anos de penitenciária da personagem principal, o Alquimista de «O Grande Cidadão», mas sim 20 anos por um homicídio que «valeu a pena». E «A Caça» não sai em 1973, mas sim a 1 de Abril de 1974, pela Regra do Jogo.

Dito isto, a distopia de «O Grande Cidadão» é toda ela um convite à resistência e à procura furiosa da liberdade. É um romance muito visual, dramático (foi levado ao palco por Joaquim Benite e o Teatro de Almada, logo em 1975), com personagens psicologicamente marcadas, numa realidade imaginada mas onde é possível ver um Portugal asfixiado até ao tutano; todavia, seria muito redutor encarar esta história projectada numa (sur)realidade paralela, como fosse somente uma crítica ao fascismo ou ao nazismo (existem também câmaras de gás). É mais do que isso e as personagens que desfilam à nossa frente têm consigo um gérmen de liberdade que ultrapassa em muito a resistência política a um governo. Elas são livres sexualmente, não suportam o racismo, são indesejáveis para a ordem pública, são marginais e violentas, dispostas a morrer e a matar em nome do seu livre arbítrio e donos de uma ética bem delineada. É todo um sistema económico, político e social que é posto em causa. E, por isso, é um romance intemporal. Daí, ser risível esta preocupação em encontrar um cromo de Virgílio Martinho para a colecção de uma suposta caderneta literária. Não dá: falta o quadradinho.

O Grande Cidadão, de Virgílio Martinho, Arcádia, 2ª edição, Fevereiro de 1975