Este livro não faz parte da teoria da conspiração sobre o Covid-19. Pelo contrário. A filósofa italiana Donatella Di Cesare analisa a pandemia que atravessamos de modo cabal, claro e sintético como só os mais capazes o fazem em temas desta complexidade. Não por acaso foi António Guerreiro a traduzi-lo, o que nos deixa sossegados. Presumo que foi dele a responsabilidade de propor às Edições 70 a sua edição. Trata-se da melhor exposição sobre o vírus que nos mudou a vida totalmente. A análise está aí para quem quiser adquirir este livrinho. Mas inquieta-nos muito e leva-nos a reflectir sobre as causas que levaram ao culminar de uma catástrofe anunciada por muitos. Mas quem lê, hoje, filósofos e escritores? Talvez uma imensa minoria, todavia, incapaz de fazer mudar o que quer que seja da «distanciação social» política da nossa «democracia imune». O capitalismo, no seu estádio actual, a não ser combatido, levar-nos-á à morte que ele próprio nos propõe abolir através das leis do mercado e do domínio mais que insano da natureza. Estamos a pagar muito caro, talvez com a morte, a aceitação da acumulação especulativa de capitais e da conquista fictícia da amortalidade que a propaganda das mercadorias nos propõe diariamente. Claro que é um paradoxo. Donatella Di Cesare explica-nos porquê, nestas breves «colagens» que vos proponho que conheçam e, principalmente, que adquiram o livro.
Algo vai mal quando metade da população mundial, ou seja, 4
biliões de seres humanos, foi confinada numa prisão domiciliária desde Março de
2020 falando à varanda uns para os outros, sem poder sair, com todos os
serviços fechados, hospitais a abarrotar, escolas e universidades fechadas,
comércio encerrado, a cultura barrada, tendo por única «comunicação» a
acomunicação por excelência: as redes sociais, o videotrabalho, as
videoconferências, a televisão, os «especialistas». A polis, a praça pública,
fechou e não se sabe quando abre ou se irá abrir no futuro; o processo,
contudo, vinha já muito detrás, quando nos anos 80, o «there are no
alternative» neoliberal se tornou um mantra e toda a contestação foi amordaçada
paulatinamente, retirando às manifestações constantes de revolta a capacidade
transformadora. O Estado imunizou-se, imunizando os seus cidadãos contra o
Outro, o estranho, que podem ser o estrangeiro, o turista ou migrante, as
minorias sexuais, os velhos, os sem-abrigo... a conquista da imunidade
defendida pelos cidadãos que aceitam sem protesto a distanciação, a ausência do
toque dos corpos, a teletemperatura, as app vigilantes e denunciadoras de
infectados, a presença do mal assintomático, veio, escrevia eu, juntamente com
a imunidade, a anestesia.
A palavra, em colagens, de Donatella Di Cesare:
«O mal que vem é um biovírus assassino, um germe
catastrófico. Mas desta vez não é uma metáfora. É o corpo físico que adoece – o
corpo exausto de humanidade, o organismo nervoso, cansado, sujeito durante anos
a uma tensão intolerável, a uma agitação extrema. Até à apneia. Talvez não seja
coincidência o facto de o vírus proliferar nas vias respiratórias, onde passa o
ar vital. O corpo subtrai-se ao ritmo acelerado, não se aguenta, cede, pára.»
(pág. 15)
«Não se pode esconder o desejo de mudança que nos últimos
anos vem aumentando devido a um sistema económico injusto, perverso, obsoleto,
cujos efeitos são a fome e a desigualdade social, a guerra e o terror, o
colapso climático do planeta, o esgotamento dos recursos. Agora, porém, é um
vírus que abala o mundo. (...) O vírus inesperado suspendeu o inevitável sempre
igual, interrompeu um crescimento que entretanto se tornou uma excrescência
incontrolável, sem medida e sem fim.» (pág. 17)
«O mal que vem, olhando bem, já tinha chegado. Era preciso
sermos cegos para não ver a catástrofe à porta, para não reconhecer a
velocidade maligna do capitalismo que não sabe nem pode ir além e tudo envolve
na sua espiral devastadora, no seu vórtice compulsivo e asfixiante. » (pág.
29/30)
«O coronavírus chama-se assim por causa da auréola
característica que o envolve. Uma auréola sugestiva e temível, uma coroa
poderosa. É um vírus soberano, a começar pelo nome. Escapa, sobrevoa, transpõe
as fronteiras, passa para além. Escarnece da soberania que pretendia ignorá-la
grotescamente ou aproveitar-se dele. E torna-se o nome de uma catástrofe
ingovernável que por todo o lado desmascarou os limites de uma ‘’governance’’
política reduzida a administração técnica. Porque o capitalismo – como sabemos –
não é um desastre natural.» (pág. 37)
«O poder totalitário é antes um vínculo férreo que funde
todos em um; em vez de ser instrumento, é o próprio terror que governa,
enquanto devora o povo, isto é, o próprio corpo, e contém já os germes da
autodestruição. E hoje? O terror tornou-se uma atmosfera. Cada um fica entregue
ao vazio planetário, exposto ao abismo cósmico. Não é necessário um aviso
directo porque os riscos parecem vir do exterior. Na sua aparente ausência, o
poder ameaça e tranquiliza, exalta o perigo e promete protecção – uma promessa
que não pode cumprir. Porque a democracia pós-totalitária requer medo e
funda-se no medo. Eis então o círculo perverso desta fobocracia.» (pág. 64)
«A abolição do outro faz-se agora por decreto – em troca de
segurança e imunidade. O corpo de cada cidadão é de facto uma fortaleza que
deve ser protegida contra inúmeros perigos e imponderáveis ameaças. Prudência e
suspeita devem determinar as relações sempre necessariamente mediadas por
dispositivos capazes de separar, conter, garantir segurança e preservar. O ‘’distanciamento
social’’ é, portanto, o selo da política imunitária.» (pág. 83)
«O que perturba nas disposições tomadas durante a emergência
da Covid-19, não é apenas a posição da distância em relação ao outro e,
portanto, o veto implícito de qualquer abraço, de qualquer efusão espontânea,
mas também a expulsão obscura de todas as relações não protegidas, da
co-presença, do encontro dos corpos. As consequências são políticas. É nesse
sentido que se deve apreender aqui o laboratório de novas e inéditas
disposições.» (pág. 84)
«O aviso da democracia imunitária não é assim tão ilegível:
afasta o perigo da massa viva e incontrolável, põe à distância o espectro da
revolta, assegurando condições saudáveis de sobrevivência.» (pág. 86)
«As praças e os lugares de encontro espontâneos foram sendo
progressivamente substituídos pelo espaço virtual da web.» (pág.87)
«Viver e trabalhar ‘’à distância’’ significa estar rodeado
de ecrãs. Na ambiguidade do ecrã resume-se todo o paradigma imunitário: ao
mesmo tempo que protege, tutela resguarda, abre o acesso ao mundo.» (pág. 87)
«O risco da prisão domiciliária em massa é uma implosão
psíquica com resultados imponderáveis. Os medos multiplicam-se: ficar doente,
perder o emprego, ser abandonado, ficar entubado. O choque viral causa
tristeza, raiva, irritabilidade, depressão, insónia. As irrupções de violência
atingem as mulheres. Sem dúvida que não se ressentem do confinamento apenas
aqueles que já têm problemas mentais. A existência de muitos mudou do dia para
a noite.» (pág. 92)
«A brutalização securitária requer mais paredes, mais arame
farpado, mais prisões.» (pág. 95)
«A vigilância da rede, aquele retículo gigantesco em que
todos são espiados por um imenso olho invisível atrás do ecrã, é a versão mais
recente do panóptico. Só que aceitamos ser exilados na transparência – e fazemo-lo de bom grado.» (pág. 100)
«Talvez acabemos por sair com uma certificação de imunidade
que atesta os nossos anticorpos. Passaremos, quase por hábito, entre
sofisticados scanners térmicos e densos circuitos de vídeo-vigilância, em
lugares e não-lugares esterilizados, mantendo a distância de segurança, olhando
à volta com cautela e desconfiança. As máscaras não nos ajudarão a distinguir
os amigos e a ser reconhecidos. Por muito tempo, continuaremos a ver por todo o
lado assintomáticos que, sem o saberem, alojam no interior a ameaça intangível
do contágio. Talvez o vírus já se tenha retirado do ar desaparecido,
dissolvido; mas o seu fantasma permanecerá por muito tempo. E ainda teremos
falta de ar, a respiração constrangida.» (pág. 117)
São estas colagens que apontam para a necessidade de uma
leitura mais atenta do «Vírus Soberano? A asfixia capitalista» de Donatella Di Cesare. Não há uma só
afirmação da filósofa italiana que não concorde, principalmente, na construção
dessa «democracia imunitária» distopia assente numa catástrofe respiratória que
iremos pagar muito caro se não agirmos contra ela e contra o capitalismo que
aqui vê uma forma lógica de tentar perpetuar-se: pela apropriação da atmosfera
e do corpo. O bioterror está aí.
António Luís Catarino
Coimbra, 21 de Setembro de 2020.