«O Gesto que Fazemos para Proteger a Cabeça», de Ana
Margarida de Carvalho é Mahler. A musicalidade que a escritora imprime à obra é
simplesmente notável. Pela pontuação, pela trama da história que nos entranha
na pele e não somente pela leitura pautada, mas também pela identificação das
personagens que a povoam. A sua leitura é perigosa:
Primeiro, nunca vimos um Alentejo e um Algarve descritos
assim secos, áridos, ventosos, pantanosos, rancorosos e revoltados. Múltiplos
pensamentos enxameiam a nossa imagem estereotipada do Alentejo. Esta imagem é
única. Não existe outra assim.
Segundo, as personagens estão envoltas numa espessa névoa
onde a autora pode ou não desvendar o decorrer da acção. Isso convida-nos à
reflexão constante tentando perscrutar o significado dos diálogos ou descrições
e o que podem querer dizer, procurando encontrar um fio lógico, nem sempre
condizente com o que esperamos.
Terceiro, nesta história nem tudo o que parece, é.
Quando nos certificamos que uma personagem terá um destino eventualmente
coerente e conforme à sua personalidade, somos surpreendidos com uma outra
narrativa dentro daquela em que a psicologia de uma personagem determina o seu comportamento.
Acontece isso com Simão e com Constantino. O primeiro, canhoto,
dado à mão do diabo – como se dizia – e intrinsecamente bom, afastado do povo
de Nadepiori, a aldeia, filho não se sabe de que pai e de uma mãe bonita
que não sabia negar-se, criado por uma avó e desprezado pela população, dado ao
contacto com os animais e a um falcão-peregrino fêmea com nome de mulher, Maria
Angelina, e uma abetarda. Animais com sortes diferentes na trama. Nunca vi, em
literatura (talvez com Miguel Torga ou Aquilino), uma descrição tão vívida do
voo de um falcão como nos é apresentado aqui. Mas a descrição do sofrimento
animal às mãos dos homens é apresentada com toques de horror. E, leitores mais
novos, acreditem no realismo descrito no livro. A maldade para com os animais
era mesmo assim. Constantino, um gémeo de Camilo, sétimo filho de sete irmãos, filho
não amado pela mãe, a «tenenta» mestra do contrabando e das mercancias
desonestas juntamente com o pai salteador e dado a mortes várias, ele, coxo de
uma perna por decisão da mãe que a parte propositadamente, violento desde miúdo,
chefe de um bando de adolescentes que distribuía terror gratuito a rodos pelo
quilombo e pelas aldeias, mas capaz de amar, também ele, tornado amigo de Simão
para o final da história, quando assume a chefia das permutas ilegais, matando
o pai e expulsando a sua mãe de Nadepiori.
Quarto, podemos situar a narrativa nos finais dos
anos trinta quando se levantava o Estado Novo e a raia era palco da Guerra
Civil de Espanha onde contrabandistas, passadores, refugiados, republicanos,
malteses, ciganos, clandestinos comunistas e opositores eram moeda de troca de
todas as traficâncias de gente sem escrúpulos, vendidos por quem desse mais
dinheiro. A revolta surda dos camponeses alentejanos eram uma realidade tal
como a escravatura dos pescadores de atum do Algarve. Tudo moeda do mesmo saco.
«Um dia a terra há-de ser de quem a trabalha».
Quinto, o ódio e a raiva, sempre o ódio omnipresente
em cada frase, em cada gesto, em cada violação de mulheres, numa agressão à
faca ou a murro, em cada gesto (universal) para proteger a cabeça - sinal
de protecção íntima e de humilhação -, em cada vocábulo, e que força lhes dá
Ana Margarida de Carvalho!, uma escritora que se torna fundamental na nossa
literatura e que a tenho, felizmente e com prazer, acompanhado.
Sexto, a conclusão óbvia da existência de uma
irmandade de mulheres que, no Alentejo, é uma realidade sentida por quem o
conhece. O capítulo III é um verdadeiro guião para um diálogo trocado por
mulheres que sabem o sentido da vida e possibilitado em escala menor pela
opressão do poder e pelo patriarcado. Mas não se enganem, – elas têm poderes
fátuos ou bem reais. Sentimos uma atracção grande por essas mulheres ao longo
de todo o livro.
Sétimo, a presença da guerra. Sempre a guerra e os horrores
que traz, descrita por um inglês sem nome, amigo de Simão e dono do falcão,
que, descobrimos nós no final, terá sido morto pela população de Nadepiori tal
como a sua ave. Por maldade. É ele que nos descreve a guerra tal como ela é e a
necessidade de lutar contra a opressão e por um mundo diferente, melhor que
este.
Oitavo, o recurso ao teatro, à cena construída no
palco de um quilombo, ou da aldeia de Nadepiori e a vez da tragédia grega e
shakespeariana com que Ana Margarida de Carvalho nos atira à cara, literalmente.
E faz muito bem porque é a raiz de tudo e as coisas não são assim tão
diferentes há 2500 ou, tão só, há 500 anos. Estão lá Medeia e Jasão, Ulisses,
Apsirto e Eurípides. Quanto a Shakespeare, embora não nomeado directamente, é
descrito magistralmente pela boca do estrangeiro ruivo, militante das Brigadas
Internacionais: «(…) o estrangeiro contava histórias, tão longínquas das
fábulas a que Simão estava acostumado, falava-lhe de um certo génio da margem
sul do Tamisa, de um príncipe atormentado da Dinamarca, que muito intrigava
Simão e dava-lhes horas de discussão, porque é que ele não matava de uma vez o
padrasto usurpador do trono e da cama da mãe (…)». É, algo vai podre…
Nono, o amor que a escritora mostra para com as suas
personagens que a fazem dialogar com elas sem que lhe sobeje tempo ou paciência
para apontar ao leitor o caminho da narrativa. Nem tinha de o fazer. Aquelas
páginas são dela e dos actores que criou. Fez, mais uma vez muito bem, e a
página 230 é verdadeiramente uma nota aos incautos. Só que agora o livro é
«nosso». Está aí para o ler e adoptarmos as personagens em nós, leitores.
Décimo e último ponto: Mahler. Repita-se que este
livro tem uma música própria. Poderemos até dançar com ele. Como conseguiu isso
Ana Margarida de Carvalho? Pela cadência da pontuação? Pela escolha criteriosa
das palavras e dos vocábulos? Pelo recurso ao trabalho contínuo da
experimentação da sonoridade das palavras conjugadas entre si? Pouco importa. O
registo é esse. Que o livro tem génio, que passa da musicalidade suave à
tempestade absoluta é sentido pelos leitores habituados à escrita que não cede
a estereótipos nem à facilidade. Um bem absoluto para a literatura portuguesa
contemporânea.
António Luís Catarino
Coimbra, 13 de Setembro de 2020.