domingo, setembro 13, 2020

«O Gesto que Fazemos para Proteger a Cabeça», de Ana Margarida de Carvalho

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«O Gesto que Fazemos para Proteger a Cabeça», de Ana Margarida de Carvalho é Mahler. A musicalidade que a escritora imprime à obra é simplesmente notável. Pela pontuação, pela trama da história que nos entranha na pele e não somente pela leitura pautada, mas também pela identificação das personagens que a povoam. A sua leitura é perigosa:

Primeiro, nunca vimos um Alentejo e um Algarve descritos assim secos, áridos, ventosos, pantanosos, rancorosos e revoltados. Múltiplos pensamentos enxameiam a nossa imagem estereotipada do Alentejo. Esta imagem é única. Não existe outra assim.

Segundo, as personagens estão envoltas numa espessa névoa onde a autora pode ou não desvendar o decorrer da acção. Isso convida-nos à reflexão constante tentando perscrutar o significado dos diálogos ou descrições e o que podem querer dizer, procurando encontrar um fio lógico, nem sempre condizente com o que esperamos.

Terceiro, nesta história nem tudo o que parece, é. Quando nos certificamos que uma personagem terá um destino eventualmente coerente e conforme à sua personalidade, somos surpreendidos com uma outra narrativa dentro daquela em que a psicologia de uma personagem determina o seu comportamento. Acontece isso com Simão e com Constantino. O primeiro, canhoto, dado à mão do diabo – como se dizia – e intrinsecamente bom, afastado do povo de Nadepiori, a aldeia, filho não se sabe de que pai e de uma mãe bonita que não sabia negar-se, criado por uma avó e desprezado pela população, dado ao contacto com os animais e a um falcão-peregrino fêmea com nome de mulher, Maria Angelina, e uma abetarda. Animais com sortes diferentes na trama. Nunca vi, em literatura (talvez com Miguel Torga ou Aquilino), uma descrição tão vívida do voo de um falcão como nos é apresentado aqui. Mas a descrição do sofrimento animal às mãos dos homens é apresentada com toques de horror. E, leitores mais novos, acreditem no realismo descrito no livro. A maldade para com os animais era mesmo assim. Constantino, um gémeo de Camilo, sétimo filho de sete irmãos, filho não amado pela mãe, a «tenenta» mestra do contrabando e das mercancias desonestas juntamente com o pai salteador e dado a mortes várias, ele, coxo de uma perna por decisão da mãe que a parte propositadamente, violento desde miúdo, chefe de um bando de adolescentes que distribuía terror gratuito a rodos pelo quilombo e pelas aldeias, mas capaz de amar, também ele, tornado amigo de Simão para o final da história, quando assume a chefia das permutas ilegais, matando o pai e expulsando a sua mãe de Nadepiori.

Quarto, podemos situar a narrativa nos finais dos anos trinta quando se levantava o Estado Novo e a raia era palco da Guerra Civil de Espanha onde contrabandistas, passadores, refugiados, republicanos, malteses, ciganos, clandestinos comunistas e opositores eram moeda de troca de todas as traficâncias de gente sem escrúpulos, vendidos por quem desse mais dinheiro. A revolta surda dos camponeses alentejanos eram uma realidade tal como a escravatura dos pescadores de atum do Algarve. Tudo moeda do mesmo saco. «Um dia a terra há-de ser de quem a trabalha».

Quinto, o ódio e a raiva, sempre o ódio omnipresente em cada frase, em cada gesto, em cada violação de mulheres, numa agressão à faca ou a murro, em cada gesto (universal) para proteger a cabeça - sinal de protecção íntima e de humilhação -, em cada vocábulo, e que força lhes dá Ana Margarida de Carvalho!, uma escritora que se torna fundamental na nossa literatura e que a tenho, felizmente e com prazer, acompanhado.

Sexto, a conclusão óbvia da existência de uma irmandade de mulheres que, no Alentejo, é uma realidade sentida por quem o conhece. O capítulo III é um verdadeiro guião para um diálogo trocado por mulheres que sabem o sentido da vida e possibilitado em escala menor pela opressão do poder e pelo patriarcado. Mas não se enganem, – elas têm poderes fátuos ou bem reais. Sentimos uma atracção grande por essas mulheres ao longo de todo o livro.

Sétimo, a presença da guerra. Sempre a guerra e os horrores que traz, descrita por um inglês sem nome, amigo de Simão e dono do falcão, que, descobrimos nós no final, terá sido morto pela população de Nadepiori tal como a sua ave. Por maldade. É ele que nos descreve a guerra tal como ela é e a necessidade de lutar contra a opressão e por um mundo diferente, melhor que este.

Oitavo, o recurso ao teatro, à cena construída no palco de um quilombo, ou da aldeia de Nadepiori e a vez da tragédia grega e shakespeariana com que Ana Margarida de Carvalho nos atira à cara, literalmente. E faz muito bem porque é a raiz de tudo e as coisas não são assim tão diferentes há 2500 ou, tão só, há 500 anos. Estão lá Medeia e Jasão, Ulisses, Apsirto e Eurípides. Quanto a Shakespeare, embora não nomeado directamente, é descrito magistralmente pela boca do estrangeiro ruivo, militante das Brigadas Internacionais: «(…) o estrangeiro contava histórias, tão longínquas das fábulas a que Simão estava acostumado, falava-lhe de um certo génio da margem sul do Tamisa, de um príncipe atormentado da Dinamarca, que muito intrigava Simão e dava-lhes horas de discussão, porque é que ele não matava de uma vez o padrasto usurpador do trono e da cama da mãe (…)». É, algo vai podre…

Nono, o amor que a escritora mostra para com as suas personagens que a fazem dialogar com elas sem que lhe sobeje tempo ou paciência para apontar ao leitor o caminho da narrativa. Nem tinha de o fazer. Aquelas páginas são dela e dos actores que criou. Fez, mais uma vez muito bem, e a página 230 é verdadeiramente uma nota aos incautos. Só que agora o livro é «nosso». Está aí para o ler e adoptarmos as personagens em nós, leitores.

Décimo e último ponto: Mahler. Repita-se que este livro tem uma música própria. Poderemos até dançar com ele. Como conseguiu isso Ana Margarida de Carvalho? Pela cadência da pontuação? Pela escolha criteriosa das palavras e dos vocábulos? Pelo recurso ao trabalho contínuo da experimentação da sonoridade das palavras conjugadas entre si? Pouco importa. O registo é esse. Que o livro tem génio, que passa da musicalidade suave à tempestade absoluta é sentido pelos leitores habituados à escrita que não cede a estereótipos nem à facilidade. Um bem absoluto para a literatura portuguesa contemporânea.

António Luís Catarino

Coimbra, 13 de Setembro de 2020.