Quem pensa que sabe tudo sobre a Revolução de Outubro de 1917, desengane-se. Este livro de Rui Bebiano dá-nos pistas fundamentais para um melhor conhecimento sobre um acontecimento fulcral da História e não só do século XX. E tão mal conhecido, correndo até o risco de ser ostracizado e subvalorizado nos bancos da escola. Perante algum desânimo do autor, assente no desconhecimento cada vez mais confrangedor que os alunos demonstram sobre a Revolução Russa, quer a de Fevereiro, quer a de Outubro, resta dizer que a coisa já vem detrás respeitante aos curricula do ensino secundário. Sendo um item estruturante das aprendizagens essenciais do 9º e do 12º ano, bastas vezes conteúdo tratado em exames nacionais do último ano de escolaridade, é, contudo, tratado de modo rápido e sumaríssimo no básico e no secundário. Tal como, aproveito para dizê-lo, os movimentos artísticos modernos e contemporâneos.
Neste «Labirintos de Outubro – cem anos de revolução e
dissidência» o autor avisa-nos que este labirinto não deve ser o de Dédalo em
Creta quase impossível de resolver (menos para Ariadne, digo eu); para Rui
Bebiano um labirinto humano é «(…) um ingresso e uma saída, que podem estar ligadas
a uma mesma porta ou a duas diferentes, pois aquilo que conta neste tipo de
arquitectura não é a forma de a ela se aceder, mas sim a complexidade máxima do
trajecto interior que comporta.»(pág. 328). Sejamos pois Ariadne e deixemos por lá o fio condutor. E esta será a única citação que utilizo
aqui sem correr o risco de descontextualizar a ligação (esta querida palavra
para as esquerdas) que o autor faz de um modo irrepreensível. De facto, o livro
tem uma consistência interna e mostra um poder de síntese do historiador que
devemos saudar. Os «mil marxismos», expressão usada por André Tosel, está em
todas as páginas do livro e vemo-nos confrontados com a enorme variedade
política em que o conflito e a hostilidade estiveram sempre presentes com diversas
facções a digladiarem-se entre si, mesmo trazendo consigo o último sacrifício de
seres humanos. E não foram poucas as vezes em que isso aconteceu. Mas, aqui, o
historiador não cai na ratoeira que o anticomunismo armou, nomeadamente o de se
analisar as consequências sem analisar as múltiplas causas que deram origem à
revolução. Assim, é-nos exposto de um modo notável a consciência transformadora
da Revolução de Outubro de 1917 como se fosse um livro aberto em que todos os actores
foram convidados a apresentar as suas convicções e caminhos a percorrer.
O entusiasmo perante o significado da Revolução de 17 na
Rússia foi mundial. E citando Enzo Traverso, Rui Bebiano é claro quando afirma
que não devemos esquecer a vontade matricial desta revolução, para alguns
historiadores o corolário lógico da Revolução Francesa de 1789, apostada em
mudar a sociedade e dar aos explorados uma vida melhor, em detrimento do enumerar os milhões
de sacrificados por diatribes burocráticas e fanáticas. O comunismo é, será
sempre, uma luta pelos «impossíveis», como disse Sousa Dias. E esse impossível
esteve desenhado nos primeiros anos de 1917 até 1928, dando ao comunismo
soviético uma real possibilidade de libertação humana. O desejo, a festa, a
realização e a luta por uma outra produção, não aviltada pelo trabalho
assalariado e muito menos pelo trabalho emulativo, estiveram bem presentes nos
inícios da Revolução. Com a figura de Lenine sempre presente (e não é nenhum santo como é demonstrado), mas acompanhado por
bolcheviques como Trostsky, Bukarine, Zinoviev, Kamenev, Radek, Alexandra Kollontai, personalidades que tiveram
percursos pessoais e políticos e que, na estratégia e na táctica, por vezes
chocaram com a linha adoptada pelo partido que então tomava o poder na Rússia. O «caso» de Estaline não é, para Rui Bebiano, a continuidade lógica do processo
revolucionário configurado totalmente pela tomada do poder em 1928 e mais
tarde pela brutal repressão de meados dos anos 30 em que os seus antigos
aliados se tornaram o inimigo a abater. Não nos esquecemos, e o livro lembra
bem, que as primeiras vítimas foram comunistas e com eles os
socialistas-revolucionários, mencheviques, anarquistas, trotsquistas, membros da Oposição Operária, gente sem partido, cada qual com o seu programa diferenciado para a
Revolução.
Quando se fala da Revolução de Outubro de 1917, fala-se igualmente
de alegria. De facto, até 1928, dançou-se em Moscovo e Leninegrado, nas
fábricas e nos campos, nas escolas e nos quartéis. E é desta Revolução que traz
consigo as diversas estradas diferentes no campo da esquerda, desde a
social-democracia até à ultra-esquerda que nos faz gostar imenso deste livro
(embora tenha alguma reticência em atribuir a Estaline o epíteto de ultra-esquerdista, seguindo a taxonomia de Richard Gombin). Não que Rui Bebiano evite falar das
mortes, dos processos fabricados ou do Gulag. Antes pelo contrário; vimos, em
Labirintos de Outubro, que são utilizadas novas fontes históricas,
recentemente trazidas à luz nos arquivos russos, da verdadeira demência
persecutória, a estalinista mas não só, que enviou para a morte, tortura e campos
de trabalho, milhões de homens e mulheres que discordavam do caminho que a
Revolução levava. O que me leva a exaltar a seriedade deste livro é, repita-se, exactamente
a linha histórica levada a cabo para não esquecer o motivo da Revolução, ou
seja, a matriz que lhe deu corpo e que a levou à vitória, à sua realização posterior, ao seu aviltamento burocrático e ao desmembramento de 1989-91: a revolução dos produtores contra uma sociedade
intrinsecamente injusta e baseada na exploração do homem pelo homem. Não convém
esquecer, na ocasião e hoje talvez mais premente que nunca, a necessidade de
construir novos «impossíveis», mas com as lições do passado. Para os que não as têm presentes, um aviso sério do historiador: a
História não perdoará a quem repetir os erros cometidos.
Seria, todavia, fastidioso estar aqui a citar o índice
onomástico das rupturas e dissidências já nossas conhecidas e familiares, visto
que estamos a falar no domínio da esquerda marxista ou marxiana (para os que pensam que Marx
nunca foi marxista). Gostaria que falasse mais na «minha» dissidência? Claro
que sim. E os «longos anos sessenta» foram riquíssimos nesses cortes. Mas, para
isso, esta síntese notável de Rui Bebiano dá-nos um caminho seguro de
referências bibliográficas. Depois, bom, será com cada leitor, mas que se nota
um equilíbrio e um prazer visíveis a cada leitura e a cada capítulo (com mais força para o
final, diga-se) dessa enorme paleta de cores que são as esquerdas, é uma
verdade que dificilmente será contestada.
O conhecimento e a interiorização histórica das esquerdas
fazem-se também pela leitura deste No Labirinto de Outubro. Que lastro nos
ficará na construção desses «impossíveis» bem desenhados por Rui Bebiano é uma
demanda que será sempre individual, mas com a certeza razoável de que as «novas
subjectividades» serão sempre colectivas.
António Luís Catarino
Coimbra, 9 de Setembro de 2020