terça-feira, setembro 29, 2020

Hipermercados, comida processada, literatura processada

 Um tipo vai ao hipermercado comprar produtos de higiene, pão, uma lâmpada led, barras bio e congelados pré-feitos e dá-se com isto:

O bebé de Auschwitz
O violino de Auschwitz
A bibliotecária de Auschwitz
As cartas perdidas de Auschwitz
O carteiro de Auschwitz
O tatuador de Auschwitz
O mágico de Auschwitz, de Santos
As irmãs de Auschwitz
Holocausto sei lá de quem e
Holocausto, de Irene Fluncher Pimentel

terça-feira, setembro 22, 2020

Viva la Muerte! ou a «ideologia» de uma moção

Eu nem me apetece sequer dar atenção a uma certa moção que nos enojou, neste domingo. Quero lembrar-vos que a extrema-direita nunca aceitou o corpo humano. Porque este lhe é profundamente estranho. Cortar, impedir, sufocar, matar, retirar, fazer ablações, castrar, torturar, ferir, são propostas recorrentes da extrema-direita cuja ideologia é o triunfo da morte pela morte, tal como foi proferida por José Millán-Astray. Este culto da força, do músculo, atrofia no corpo humano toda a hipótese de desejo, do acto comum, solidário, dramatizado por dois corpos juntos. Eles não o conhecem, por isso são contra.

segunda-feira, setembro 21, 2020

«Vírus soberano? A asfixia capitalista», de Donatella Di Cesare. Algumas colagens


Este livro não faz parte da teoria da conspiração sobre o Covid-19. Pelo contrário. A filósofa italiana Donatella Di Cesare analisa a pandemia que atravessamos de modo cabal, claro e sintético como só os mais capazes o fazem em temas desta complexidade. Não por acaso foi António Guerreiro a traduzi-lo, o que nos deixa sossegados. Presumo que foi dele a responsabilidade de propor às Edições 70 a sua edição. Trata-se da melhor exposição sobre o vírus que nos mudou a vida totalmente. A análise está aí para quem quiser adquirir este livrinho. Mas inquieta-nos muito e leva-nos a reflectir sobre as causas que levaram ao culminar de uma catástrofe anunciada por muitos. Mas quem lê, hoje, filósofos e escritores? Talvez uma imensa minoria, todavia, incapaz de fazer mudar o que quer que seja da «distanciação social» política da nossa «democracia imune». O capitalismo, no seu estádio actual, a não ser combatido, levar-nos-á à morte que ele próprio nos propõe abolir através das leis do mercado e do domínio mais que insano da natureza. Estamos a pagar muito caro, talvez com a morte, a aceitação da acumulação especulativa de capitais e da conquista fictícia da amortalidade que a propaganda das mercadorias nos propõe diariamente. Claro que é um paradoxo. Donatella Di Cesare explica-nos porquê, nestas breves «colagens» que vos proponho que conheçam e, principalmente, que adquiram o livro.

Algo vai mal quando metade da população mundial, ou seja, 4 biliões de seres humanos, foi confinada numa prisão domiciliária desde Março de 2020 falando à varanda uns para os outros, sem poder sair, com todos os serviços fechados, hospitais a abarrotar, escolas e universidades fechadas, comércio encerrado, a cultura barrada, tendo por única «comunicação» a acomunicação por excelência: as redes sociais, o videotrabalho, as videoconferências, a televisão, os «especialistas». A polis, a praça pública, fechou e não se sabe quando abre ou se irá abrir no futuro; o processo, contudo, vinha já muito detrás, quando nos anos 80, o «there are no alternative» neoliberal se tornou um mantra e toda a contestação foi amordaçada paulatinamente, retirando às manifestações constantes de revolta a capacidade transformadora. O Estado imunizou-se, imunizando os seus cidadãos contra o Outro, o estranho, que podem ser o estrangeiro, o turista ou migrante, as minorias sexuais, os velhos, os sem-abrigo... a conquista da imunidade defendida pelos cidadãos que aceitam sem protesto a distanciação, a ausência do toque dos corpos, a teletemperatura, as app vigilantes e denunciadoras de infectados, a presença do mal assintomático, veio, escrevia eu, juntamente com a imunidade, a anestesia.

A palavra, em colagens, de Donatella Di Cesare:

«O mal que vem é um biovírus assassino, um germe catastrófico. Mas desta vez não é uma metáfora. É o corpo físico que adoece – o corpo exausto de humanidade, o organismo nervoso, cansado, sujeito durante anos a uma tensão intolerável, a uma agitação extrema. Até à apneia. Talvez não seja coincidência o facto de o vírus proliferar nas vias respiratórias, onde passa o ar vital. O corpo subtrai-se ao ritmo acelerado, não se aguenta, cede, pára.» (pág. 15)

«Não se pode esconder o desejo de mudança que nos últimos anos vem aumentando devido a um sistema económico injusto, perverso, obsoleto, cujos efeitos são a fome e a desigualdade social, a guerra e o terror, o colapso climático do planeta, o esgotamento dos recursos. Agora, porém, é um vírus que abala o mundo. (...) O vírus inesperado suspendeu o inevitável sempre igual, interrompeu um crescimento que entretanto se tornou uma excrescência incontrolável, sem medida e sem fim.» (pág. 17)

«O mal que vem, olhando bem, já tinha chegado. Era preciso sermos cegos para não ver a catástrofe à porta, para não reconhecer a velocidade maligna do capitalismo que não sabe nem pode ir além e tudo envolve na sua espiral devastadora, no seu vórtice compulsivo e asfixiante. » (pág. 29/30)

«O coronavírus chama-se assim por causa da auréola característica que o envolve. Uma auréola sugestiva e temível, uma coroa poderosa. É um vírus soberano, a começar pelo nome. Escapa, sobrevoa, transpõe as fronteiras, passa para além. Escarnece da soberania que pretendia ignorá-la grotescamente ou aproveitar-se dele. E torna-se o nome de uma catástrofe ingovernável que por todo o lado desmascarou os limites de uma ‘’governance’’ política reduzida a administração técnica. Porque o capitalismo – como sabemos – não é um desastre natural.» (pág. 37)

«O poder totalitário é antes um vínculo férreo que funde todos em um; em vez de ser instrumento, é o próprio terror que governa, enquanto devora o povo, isto é, o próprio corpo, e contém já os germes da autodestruição. E hoje? O terror tornou-se uma atmosfera. Cada um fica entregue ao vazio planetário, exposto ao abismo cósmico. Não é necessário um aviso directo porque os riscos parecem vir do exterior. Na sua aparente ausência, o poder ameaça e tranquiliza, exalta o perigo e promete protecção – uma promessa que não pode cumprir. Porque a democracia pós-totalitária requer medo e funda-se no medo. Eis então o círculo perverso desta fobocracia.» (pág. 64)

«A abolição do outro faz-se agora por decreto – em troca de segurança e imunidade. O corpo de cada cidadão é de facto uma fortaleza que deve ser protegida contra inúmeros perigos e imponderáveis ameaças. Prudência e suspeita devem determinar as relações sempre necessariamente mediadas por dispositivos capazes de separar, conter, garantir segurança e preservar. O ‘’distanciamento social’’ é, portanto, o selo da política imunitária.» (pág. 83)

«O que perturba nas disposições tomadas durante a emergência da Covid-19, não é apenas a posição da distância em relação ao outro e, portanto, o veto implícito de qualquer abraço, de qualquer efusão espontânea, mas também a expulsão obscura de todas as relações não protegidas, da co-presença, do encontro dos corpos. As consequências são políticas. É nesse sentido que se deve apreender aqui o laboratório de novas e inéditas disposições.» (pág. 84)

«O aviso da democracia imunitária não é assim tão ilegível: afasta o perigo da massa viva e incontrolável, põe à distância o espectro da revolta, assegurando condições saudáveis de sobrevivência.» (pág. 86)

«As praças e os lugares de encontro espontâneos foram sendo progressivamente substituídos pelo espaço virtual da web.» (pág.87)

«Viver e trabalhar ‘’à distância’’ significa estar rodeado de ecrãs. Na ambiguidade do ecrã resume-se todo o paradigma imunitário: ao mesmo tempo que protege, tutela resguarda, abre o acesso ao mundo.» (pág. 87)

«O risco da prisão domiciliária em massa é uma implosão psíquica com resultados imponderáveis. Os medos multiplicam-se: ficar doente, perder o emprego, ser abandonado, ficar entubado. O choque viral causa tristeza, raiva, irritabilidade, depressão, insónia. As irrupções de violência atingem as mulheres. Sem dúvida que não se ressentem do confinamento apenas aqueles que já têm problemas mentais. A existência de muitos mudou do dia para a noite.» (pág. 92)

«A brutalização securitária requer mais paredes, mais arame farpado, mais prisões.» (pág. 95)

«A vigilância da rede, aquele retículo gigantesco em que todos são espiados por um imenso olho invisível atrás do ecrã, é a versão mais recente do panóptico. Só que aceitamos ser exilados na transparência – e fazemo-lo de bom grado.» (pág. 100)

«Talvez acabemos por sair com uma certificação de imunidade que atesta os nossos anticorpos. Passaremos, quase por hábito, entre sofisticados scanners térmicos e densos circuitos de vídeo-vigilância, em lugares e não-lugares esterilizados, mantendo a distância de segurança, olhando à volta com cautela e desconfiança. As máscaras não nos ajudarão a distinguir os amigos e a ser reconhecidos. Por muito tempo, continuaremos a ver por todo o lado assintomáticos que, sem o saberem, alojam no interior a ameaça intangível do contágio. Talvez o vírus já se tenha retirado do ar desaparecido, dissolvido; mas o seu fantasma permanecerá por muito tempo. E ainda teremos falta de ar, a respiração constrangida.» (pág. 117)

São estas colagens que apontam para a necessidade de uma leitura mais atenta do «Vírus Soberano? A asfixia capitalista» de Donatella Di Cesare. Não há uma só afirmação da filósofa italiana que não concorde, principalmente, na construção dessa «democracia imunitária» distopia assente numa catástrofe respiratória que iremos pagar muito caro se não agirmos contra ela e contra o capitalismo que aqui vê uma forma lógica de tentar perpetuar-se: pela apropriação da atmosfera e do corpo. O bioterror está aí.

António Luís Catarino

Coimbra, 21 de Setembro de 2020.

domingo, setembro 13, 2020

«O Gesto que Fazemos para Proteger a Cabeça», de Ana Margarida de Carvalho

O Gesto que Fazemos para Proteger a Cabeça - Ana Margarida de Carvalho -  Compra Livros na Fnac.pt 

«O Gesto que Fazemos para Proteger a Cabeça», de Ana Margarida de Carvalho é Mahler. A musicalidade que a escritora imprime à obra é simplesmente notável. Pela pontuação, pela trama da história que nos entranha na pele e não somente pela leitura pautada, mas também pela identificação das personagens que a povoam. A sua leitura é perigosa:

Primeiro, nunca vimos um Alentejo e um Algarve descritos assim secos, áridos, ventosos, pantanosos, rancorosos e revoltados. Múltiplos pensamentos enxameiam a nossa imagem estereotipada do Alentejo. Esta imagem é única. Não existe outra assim.

Segundo, as personagens estão envoltas numa espessa névoa onde a autora pode ou não desvendar o decorrer da acção. Isso convida-nos à reflexão constante tentando perscrutar o significado dos diálogos ou descrições e o que podem querer dizer, procurando encontrar um fio lógico, nem sempre condizente com o que esperamos.

Terceiro, nesta história nem tudo o que parece, é. Quando nos certificamos que uma personagem terá um destino eventualmente coerente e conforme à sua personalidade, somos surpreendidos com uma outra narrativa dentro daquela em que a psicologia de uma personagem determina o seu comportamento. Acontece isso com Simão e com Constantino. O primeiro, canhoto, dado à mão do diabo – como se dizia – e intrinsecamente bom, afastado do povo de Nadepiori, a aldeia, filho não se sabe de que pai e de uma mãe bonita que não sabia negar-se, criado por uma avó e desprezado pela população, dado ao contacto com os animais e a um falcão-peregrino fêmea com nome de mulher, Maria Angelina, e uma abetarda. Animais com sortes diferentes na trama. Nunca vi, em literatura (talvez com Miguel Torga ou Aquilino), uma descrição tão vívida do voo de um falcão como nos é apresentado aqui. Mas a descrição do sofrimento animal às mãos dos homens é apresentada com toques de horror. E, leitores mais novos, acreditem no realismo descrito no livro. A maldade para com os animais era mesmo assim. Constantino, um gémeo de Camilo, sétimo filho de sete irmãos, filho não amado pela mãe, a «tenenta» mestra do contrabando e das mercancias desonestas juntamente com o pai salteador e dado a mortes várias, ele, coxo de uma perna por decisão da mãe que a parte propositadamente, violento desde miúdo, chefe de um bando de adolescentes que distribuía terror gratuito a rodos pelo quilombo e pelas aldeias, mas capaz de amar, também ele, tornado amigo de Simão para o final da história, quando assume a chefia das permutas ilegais, matando o pai e expulsando a sua mãe de Nadepiori.

Quarto, podemos situar a narrativa nos finais dos anos trinta quando se levantava o Estado Novo e a raia era palco da Guerra Civil de Espanha onde contrabandistas, passadores, refugiados, republicanos, malteses, ciganos, clandestinos comunistas e opositores eram moeda de troca de todas as traficâncias de gente sem escrúpulos, vendidos por quem desse mais dinheiro. A revolta surda dos camponeses alentejanos eram uma realidade tal como a escravatura dos pescadores de atum do Algarve. Tudo moeda do mesmo saco. «Um dia a terra há-de ser de quem a trabalha».

Quinto, o ódio e a raiva, sempre o ódio omnipresente em cada frase, em cada gesto, em cada violação de mulheres, numa agressão à faca ou a murro, em cada gesto (universal) para proteger a cabeça - sinal de protecção íntima e de humilhação -, em cada vocábulo, e que força lhes dá Ana Margarida de Carvalho!, uma escritora que se torna fundamental na nossa literatura e que a tenho, felizmente e com prazer, acompanhado.

Sexto, a conclusão óbvia da existência de uma irmandade de mulheres que, no Alentejo, é uma realidade sentida por quem o conhece. O capítulo III é um verdadeiro guião para um diálogo trocado por mulheres que sabem o sentido da vida e possibilitado em escala menor pela opressão do poder e pelo patriarcado. Mas não se enganem, – elas têm poderes fátuos ou bem reais. Sentimos uma atracção grande por essas mulheres ao longo de todo o livro.

Sétimo, a presença da guerra. Sempre a guerra e os horrores que traz, descrita por um inglês sem nome, amigo de Simão e dono do falcão, que, descobrimos nós no final, terá sido morto pela população de Nadepiori tal como a sua ave. Por maldade. É ele que nos descreve a guerra tal como ela é e a necessidade de lutar contra a opressão e por um mundo diferente, melhor que este.

Oitavo, o recurso ao teatro, à cena construída no palco de um quilombo, ou da aldeia de Nadepiori e a vez da tragédia grega e shakespeariana com que Ana Margarida de Carvalho nos atira à cara, literalmente. E faz muito bem porque é a raiz de tudo e as coisas não são assim tão diferentes há 2500 ou, tão só, há 500 anos. Estão lá Medeia e Jasão, Ulisses, Apsirto e Eurípides. Quanto a Shakespeare, embora não nomeado directamente, é descrito magistralmente pela boca do estrangeiro ruivo, militante das Brigadas Internacionais: «(…) o estrangeiro contava histórias, tão longínquas das fábulas a que Simão estava acostumado, falava-lhe de um certo génio da margem sul do Tamisa, de um príncipe atormentado da Dinamarca, que muito intrigava Simão e dava-lhes horas de discussão, porque é que ele não matava de uma vez o padrasto usurpador do trono e da cama da mãe (…)». É, algo vai podre…

Nono, o amor que a escritora mostra para com as suas personagens que a fazem dialogar com elas sem que lhe sobeje tempo ou paciência para apontar ao leitor o caminho da narrativa. Nem tinha de o fazer. Aquelas páginas são dela e dos actores que criou. Fez, mais uma vez muito bem, e a página 230 é verdadeiramente uma nota aos incautos. Só que agora o livro é «nosso». Está aí para o ler e adoptarmos as personagens em nós, leitores.

Décimo e último ponto: Mahler. Repita-se que este livro tem uma música própria. Poderemos até dançar com ele. Como conseguiu isso Ana Margarida de Carvalho? Pela cadência da pontuação? Pela escolha criteriosa das palavras e dos vocábulos? Pelo recurso ao trabalho contínuo da experimentação da sonoridade das palavras conjugadas entre si? Pouco importa. O registo é esse. Que o livro tem génio, que passa da musicalidade suave à tempestade absoluta é sentido pelos leitores habituados à escrita que não cede a estereótipos nem à facilidade. Um bem absoluto para a literatura portuguesa contemporânea.

António Luís Catarino

Coimbra, 13 de Setembro de 2020.

quarta-feira, setembro 09, 2020

«No Labirinto de Outubro - Cem Anos de Revolução e Dissidência», de Rui Bebiano

 No Labirinto De Outubro- Cem Anos De Revolução E Dissidência - eBook - WOOK

Quem pensa que sabe tudo sobre a Revolução de Outubro de 1917, desengane-se. Este livro de Rui Bebiano dá-nos pistas fundamentais para um melhor conhecimento sobre um acontecimento fulcral da História e não só do século XX. E tão mal conhecido, correndo até o risco de ser ostracizado e subvalorizado nos bancos da escola. Perante algum desânimo do autor, assente no desconhecimento cada vez mais confrangedor que os alunos demonstram sobre a Revolução Russa, quer a de Fevereiro, quer a de Outubro, resta dizer que a coisa já vem detrás respeitante aos curricula do ensino secundário. Sendo um item estruturante das aprendizagens essenciais do 9º e do 12º ano, bastas vezes conteúdo tratado em exames nacionais do último ano de escolaridade, é, contudo, tratado de modo rápido e sumaríssimo no básico e no secundário. Tal como, aproveito para dizê-lo, os movimentos artísticos modernos e contemporâneos.

Neste «Labirintos de Outubro – cem anos de revolução e dissidência» o autor avisa-nos que este labirinto não deve ser o de Dédalo em Creta quase impossível de resolver (menos para Ariadne, digo eu); para Rui Bebiano um labirinto humano é «(…) um ingresso e uma saída, que podem estar ligadas a uma mesma porta ou a duas diferentes, pois aquilo que conta neste tipo de arquitectura não é a forma de a ela se aceder, mas sim a complexidade máxima do trajecto interior que comporta.»(pág. 328). Sejamos pois Ariadne e deixemos por lá o fio condutor. E esta será a única citação que utilizo aqui sem correr o risco de descontextualizar a ligação (esta querida palavra para as esquerdas) que o autor faz de um modo irrepreensível. De facto, o livro tem uma consistência interna e mostra um poder de síntese do historiador que devemos saudar. Os «mil marxismos», expressão usada por André Tosel, está em todas as páginas do livro e vemo-nos confrontados com a enorme variedade política em que o conflito e a hostilidade estiveram sempre presentes com diversas facções a digladiarem-se entre si, mesmo trazendo consigo o último sacrifício de seres humanos. E não foram poucas as vezes em que isso aconteceu. Mas, aqui, o historiador não cai na ratoeira que o anticomunismo armou, nomeadamente o de se analisar as consequências sem analisar as múltiplas causas que deram origem à revolução. Assim, é-nos exposto de um modo notável a consciência transformadora da Revolução de Outubro de 1917 como se fosse um livro aberto em que todos os actores foram convidados a apresentar as suas convicções e caminhos a percorrer.

O entusiasmo perante o significado da Revolução de 17 na Rússia foi mundial. E citando Enzo Traverso, Rui Bebiano é claro quando afirma que não devemos esquecer a vontade matricial desta revolução, para alguns historiadores o corolário lógico da Revolução Francesa de 1789, apostada em mudar a sociedade e dar aos explorados uma vida melhor, em detrimento do enumerar os milhões de sacrificados por diatribes burocráticas e fanáticas. O comunismo é, será sempre, uma luta pelos «impossíveis», como disse Sousa Dias. E esse impossível esteve desenhado nos primeiros anos de 1917 até 1928, dando ao comunismo soviético uma real possibilidade de libertação humana. O desejo, a festa, a realização e a luta por uma outra produção, não aviltada pelo trabalho assalariado e muito menos pelo trabalho emulativo, estiveram bem presentes nos inícios da Revolução. Com a figura de Lenine sempre presente (e não é nenhum santo como é demonstrado), mas acompanhado por bolcheviques como Trostsky, Bukarine, Zinoviev, Kamenev, Radek, Alexandra Kollontai, personalidades que tiveram percursos pessoais e políticos e que, na estratégia e na táctica, por vezes chocaram com a linha adoptada pelo partido que então tomava o poder na Rússia. O «caso» de Estaline não é, para Rui Bebiano, a continuidade lógica do processo revolucionário configurado totalmente pela tomada do poder em 1928 e mais tarde pela brutal repressão de meados dos anos 30 em que os seus antigos aliados se tornaram o inimigo a abater. Não nos esquecemos, e o livro lembra bem, que as primeiras vítimas foram comunistas e com eles os socialistas-revolucionários, mencheviques, anarquistas, trotsquistas, membros da Oposição Operária, gente sem partido, cada qual com o seu programa diferenciado para a Revolução.

Quando se fala da Revolução de Outubro de 1917, fala-se igualmente de alegria. De facto, até 1928, dançou-se em Moscovo e Leninegrado, nas fábricas e nos campos, nas escolas e nos quartéis. E é desta Revolução que traz consigo as diversas estradas diferentes no campo da esquerda, desde a social-democracia até à ultra-esquerda que nos faz gostar imenso deste livro (embora tenha alguma reticência em atribuir a Estaline o epíteto de ultra-esquerdista, seguindo a taxonomia de Richard Gombin). Não que Rui Bebiano evite falar das mortes, dos processos fabricados ou do Gulag. Antes pelo contrário; vimos, em Labirintos de Outubro, que são utilizadas novas fontes históricas, recentemente trazidas à luz nos arquivos russos, da verdadeira demência persecutória, a estalinista mas não só, que enviou para a morte, tortura e campos de trabalho, milhões de homens e mulheres que discordavam do caminho que a Revolução levava. O que me leva a exaltar a seriedade deste livro é, repita-se, exactamente a linha histórica levada a cabo para não esquecer o motivo da Revolução, ou seja, a matriz que lhe deu corpo e que a levou à vitória, à sua realização posterior, ao seu aviltamento burocrático e ao desmembramento de 1989-91: a revolução dos produtores contra uma sociedade intrinsecamente injusta e baseada na exploração do homem pelo homem. Não convém esquecer, na ocasião e hoje talvez mais premente que nunca, a necessidade de construir novos «impossíveis», mas com as lições do passado. Para os que não as têm presentes, um aviso sério do historiador: a História não perdoará a quem repetir os erros cometidos.

Seria, todavia, fastidioso estar aqui a citar o índice onomástico das rupturas e dissidências já nossas conhecidas e familiares, visto que estamos a falar no domínio da esquerda marxista ou marxiana (para os que pensam que Marx nunca foi marxista). Gostaria que falasse mais na «minha» dissidência? Claro que sim. E os «longos anos sessenta» foram riquíssimos nesses cortes. Mas, para isso, esta síntese notável de Rui Bebiano dá-nos um caminho seguro de referências bibliográficas. Depois, bom, será com cada leitor, mas que se nota um equilíbrio e um prazer visíveis a cada leitura e a cada capítulo (com mais força para o final, diga-se) dessa enorme paleta de cores que são as esquerdas, é uma verdade que dificilmente será contestada.

O conhecimento e a interiorização histórica das esquerdas fazem-se também pela leitura deste No Labirinto de Outubro. Que lastro nos ficará na construção desses «impossíveis» bem desenhados por Rui Bebiano é uma demanda que será sempre individual, mas com a certeza razoável de que as «novas subjectividades» serão sempre colectivas.

António Luís Catarino

Coimbra, 9 de Setembro de 2020