Era uma vez um ouriço e uma raposa... este ensaio de Isaiah
Berlin poderia iniciar-se assim mesmo, que não levaríamos a mal. Poderia tomar
a forma de uma fábula, mas não é disso que se trata. É uma adaptação de versos
de Arquíloco quando este afirma «A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe
uma coisa muito importante.» Quereis ser raposa ou ouriço? Aqueles que veem o
mundo através de um princípio organizador único serão um ouriço. Raposas serão
os que interpretam o mundo através de várias pontas e vários prismas. I.B. dá
então um exemplo: como raposas estão inseridos Dante, Heródoto, Aristóteles,
Montaigne, Erasmo, Molière, Goethe, Púchkin, Balzac e Joyce; ouriços, embora em
graus diferentes, são Platão, Lucrécio, Pascal, Hegel, Dostoiévski, Nietzsche,
Ibsen e Proust.
Para um liberal como Isaiah Berlin esta preocupação de
catalogar personalidades tão ricas, de ambos os lados, não deixa de nos espantar
e mesmo preocupar, pensando nós que esta necessidade de compartimentação
intelectual, não se sabe bem porquê, pertenceria eventualmente à esquerda,
traduzida do «gauche» francês por
canhestro, desajeitado, do italiano «sinistra», belíssimo termo que nos
transporta a uma entidade suspeita de muitos males e a portuguesa «esquerda»,
esquerda que, até meados do século XX, ainda era conotada com o diabo, razão
pela qual os canhotos eram obrigados na escola a corrigirem, por vezes à pancada,
a mania estúpida de escrever sem ser com a mão direita! E, já agora, Lenine para quem o
esquerdismo era uma doença infantil do comunismo, tipo sarampo ou escarlatina.
Mais nos admiramos com a prelecção de Berlin, considerada
pelo The Guardian como o 28º melhor ensaio de todos os tempos (nada meigos!),
quando este se debruça sobre o «Guerra e Paz» de Tolstói e sobre o autor,
ele-mesmo. Tolstói não figura, se repararem naqueles rótulos, como raposa ou
ouriço. Isaiah Berlin coloca-o num limbo afirmando que Tolstói era um ouriço
que queria ser raposa, devido à sua visão unitária do mundo, mas com dúvidas
imensas que o levavam a analisar tudo sob várias perspectivas. Até se
compreende mas, ao afirmar que Stendhal era a «dívida» de toda a obra de
Tolstói o que ele teria corroborado numa entrevista, porque não o colocou
aquele como raposa? Mas a surpresa maior é que esta alocução, que teve vários
títulos diferentes, críticas a rodos e contrariedades várias, e que nos
apercebemos nesta edição, tem o sub-título de «Ensaio sobre a visão da História
de Tolstói» e aqui, com a devida proporção, surgem tantas dúvidas quantas as
que teve Tolstói durante toda a sua vida! Como se pode afirmar o positivismo de
Tolstói no epílogo de «Guerra e Paz» que, como nos lembramos, é dedicada às
questões históricas? Ora, como sabemos, o positivismo trouxe consigo algumas
correcções necessárias às Ciências Humanas, mas limitou-se, em História, a uma
descrição interminável de factos e acontecimentos datados, que teriam como
protagonistas actores de vulto fossem eles somente reis, presidentes, ministros
ou cabos de guerra. Quando lemos o epílogo da obra de Tolstói reparamos que
nada disto é seguido optando este por descrever a História como uma sucessão de
factos em que os agentes políticos ou militares nada mudam, nunca transformam
nada de facto, julgando-se, ao mesmo tempo, donos do devir do mundo. Tolstói
apresenta-nos a sucessão de acontecimentos históricos como sendo originados por
forças ocultas, telúricas, criadas por uma mole imensa de vontades estranhas e
que se conjugam aqui e ali numa forte torrente. Chega a desdenhar os grandes
vultos do seu tempo, como Kotuzov, Napoleão, Alexandre, Catarina ou os
Habsburgos que julgam poder mudar alguma coisa. Portanto, Tolstói positivista?
Há, contudo, outras afirmações que não são menos polémicas
por parte de Isaiah Berlin. Já sabemos que ele era um liberal adverso de todos
os totalitarismos. Se pensarmos que este ensaio foi escrito em 1953, oito anos
após o derrube do nazi-fascismo em que os sentimentos antifascistas estavam
muito vivos (mais do que hoje, diga-se), compreende-se que se possam ver
teorias fascistas de um modo exacerbado, mas Tolstói precursor do fascismo indo
buscar a Proudhon e a De Maistre as suas ideias não será um pouco demasiado?
Mesmo que no fim de um capítulo do ensaio I.B. seja mais suave. Vejamos o que diz Berlin: «A analogia [com De
Maistre] não pode, ainda assim, ser excessivamente vincada: é verdade que tanto
Maistre e Tolstói atribuem a maior importância possível à guerra e ao conflito,
mas Maistre, como Proudhon depois dele, exalta a guerra e declara-a misteriosa
e divina, enquanto Tolstói a detesta e a considera, em princípio, explicável,
desde que saibamos o suficiente acerca das muitas pequenas causas – o famoso
«diferencial» da história. (...) A visão de Maistre é a de um mundo de
criaturas selvagens que se atiram umas às outras sem dó nem piedade, matam por
matar, coisa que vê como a condição normal de toda a vida animada. Tolstói está
longe de tal terror, crime e sadismo, e não é, com a devida licença de Albert
Sorel e Vogüé [estes verdadeiros arautos do fascismo moderno], em sentido
nenhum, um místico: não receia questionar nada e acredita na existência de uma
qualquer resposta simples – basta que não insistamos em torturar-nos a
procurá-la em lugares estranhos e remotos quando ela está sempre à nossa frente.»
E as diferenças continuam por mais páginas a seguir a esta.
Pergunta-se agora: de que vale levantar uma questão através de uma afirmação
polémica, como exemplo «...seria Tolstói um seguidor de De Maistre [ou já agora
de Bossuet] paladinos do absolutismo e seguidos por fascistas?», para depois
passar o resto do ensaio (o 28º oitavo melhor de todos os tempos, repita-se!) a dizer o
contrário e a sublinhar as diferenças? Será esta a verdadeira metodologia para
um êxito ensaístico?
António Luís Catarino
Coimbra, 27 de Agosto de 2020