O que dizer após uma leitura de «Guerra e Paz»? Um manancial
de dúvidas se sobrepõe no seu final. Não as dúvidas elaboradas por Lev Tolstói,
muitas do domínio metafísico com que encerrou a sua vida, nem pelo seu estranho
epílogo em que interroga sobre o papel da História no desenvolvimento dos
acontecimentos humanos, mas tão só pelos papéis de André, Pedro e de Karataiev,
ou de Natacha e de Maria. Por mais que se leia e tente interpretar aquelas
personagens nunca chegaremos a entender o seu papel determinante no decorrer da
saga. Creio que esse facto é o que faz um verdadeiro romance. Serão todos alter
egos de Tolstói? Escreveram-se páginas infindáveis sobre «Guerra e Paz» e, não
me atrevendo a qualquer análise pequena que seja, aquilo que me vem à cabeça é
que Tolstói dividiu a sua existência atribulada e contraditória nestas
personagens bem reais com sentimentos múltiplos e diversos em que já passámos
na nossa vida. É isso que faz a utilidade e unidade de um romance, se bem podemos
expressar-nos desta maneira. E as imagens que «Guerra e Paz» nos dá! Um
imperador da Rússia, imberbe, rancoroso, quase imbecil e permeável que se
mostra da varanda do seu palácio comendo uma bolacha, acenando, e, endeusado por
uma multidão, entusiasma-se de tal modo que, pedindo um prato cheio, as atira ao povo! André, quando é ferido gravemente em Austerlitz, olhando para o céu e
para os campos, abandona-se a uma grande calma e plenitude, amando naquele
instante a humanidade e a natureza. Também a imagem de Napoleão fugindo de Kotuzov
que nem o chega a atacar frontalmente, de uma Moscovo destruída deixando as
suas tropas para trás com todos os sofrimentos possíveis e este marechal, como
uma raposa sabida, que contra todos os arrivistas, segue a sua própria
estratégia de desgaste do inimigo e confia na sua Mãe-Rússia que expulsa os
soldados franceses como um corpo estranho se tratasse. E Pedro, conde ilegítimo,
herdeiro de uma imensa fortuna da nobreza que por fastio e aborrecimento o seu
pai lhe deixa, e que encontra a felicidade no despojamento material, espiritual
e também no segundo casamento com a ingénua Natacha, enquanto se comove com a
sua própria filantropia para com os miseráveis camponeses russos, dando-lhes
escolas, hospitais e abolindo as corveias que quase o arruínam. Admira-se
quando estes, habituados à escravidão, o não compreendem. Maria, esse miasma
criado por um pai absoluto, teocrata, que humilha a sua fé e que só se liberta
casando (por conveniência? Nunca o saberemos.) com um Rostov, da grande nobreza
já endividada, no início do século XIX.
Este mosaico de personagens é de uma riqueza impressionante
só ao alcance de alguns. Não sei se acreditam na genialidade, mas gostava de
ver o caixote de lixo de Tolstói e ver o quanto teve de trabalhar para chegar a
este apuramento narrativo. Juntamente com questões mais comezinhas como esta e
que me poderão responder: a) quem era Madame de Souza que é citada numa festa
nobre de um salão? b) porque aparece várias vezes o nome de Conde Tolstói ou
Ostermann-Tolstói como sendo um importante membro do conselho superior militar
do imperador, Alexandre I, quase cinquenta anos antes de «Guerra e Paz»? Será
este um ascendente do escritor?
António Luís Catarino
Atalaia, 19 de Agosto de 2020.