segunda-feira, agosto 31, 2020

«O Vermelho e o Negro», de Stendhal

 Vanina Vanini (racconto) - Wikipedia

Houve quem dissesse que «O Vermelho e o Negro», de Stendhal, era uma história da luta de classes… mas ao contrário! Embora não saiba já quem o disse, a verdade é essa. Julien Sorel é um sacana, aliás, mais que um sacana. Um verdadeiro filho da mãe que não a nomeia sequer uma única vez em todo o romance. Só o ódio pelo pai, carpinteiro, e pelos dois irmãos que não suportavam o ar pedante do herói de Stendhal. Conseguimos mesmo embirrar com a hipocrisia e o ar angélico de quem estudou pelos jesuítas no seminário e se preparava para ser padre, ou talvez bispo. Julien subiu todos os degraus da escala social da época francesa da Restauração aristocrática iniciada em 1830. Embora devoto de Deus e de Napoleão, nunca mostrou publicamente a admiração deste último, porque isso o poderia embaraçar. Inteligente, mas pouco culto, sabia somente os Evangelhos de cor e em latim o que fazia com a burguesia e aristocracia abrissem, com espanto e denodo, as suas bocas em jantares e salões que frequentava. Depois de amar Madame de Rênal, cujo marido serve de trampolim social a Sorel, vai para casa do Marquês de Mole que lhe abre as portas da nobreza lembrando-lhe sempre a sua pobre ascendência pequeno-burguesa. Julien não se verga continuando a mostrar-se bastante adestrado para a casa De Mole, enquanto lhe seduz a filha, Matilde, que engravida. A sua «carreira», de um extremo calculismo, sofre um abalo fatal e o fim do livro é pungente do romantismo mais exacerbado, mesmo que Stendhal seja conotado com o início do realismo: tenta matar a senhora Rênal a tiro e após a sua mulher tentar corromper o júri do tribunal, após várias tramas políticas, Julien é condenado à morte pela guilhotina, o que acontece. A sua cabeça é colocada literalmente no colo de Madame Rênal!

No fundo, a aristocracia triunfa sobre a burguesia, mas «O Vermelho e o Negro» traduz bem a luta por vezes surda, outras, completamente aberta, entre as várias personagens pertencentes às classes sociais opostas. O medo da revolução ou da revolta das classes subalternas, ou seja, o medo de 1789 ou, mais concretamente, do «Terror» de 1793, está sempre presente em todo o romance e as decisões são tomadas tendo em conta o domínio político e social da aristocracia após a época imperial. Marquês de Mole, numa reunião política secreta em que Julien a secretaria, chega a afirmar que se o projecto aristocrático falhar depois de 1830, a Europa só conhecerá repúblicas e os castelos e igrejas serão pilhados sem piedade. Ainda faltava algum tempo até 1848 e 1870!

Stendhal foi um soldado de Napoleão e, como tal, esteve na Itália em serviço militar. Observador, sabia do que falava e não esconde a sua simpatia por Napoleão, mas é igualmente explícita a sua antipatia quer pela aristocracia, quer pela burguesia, que lhe chama balofa e ávida de subir socialmente, seja a que preço for. Entra aqui Julien que é bem o retrato desta mesma classe e que paga com a sua vida esse propósito.

Mas o autor de «O Vermelho e o Negro» é clarividente: a burguesia substituirá, pela paz ou pela força e pela violência, o que nunca se saberá, a ridícula nobreza já mais morta que viva, praticamente dizimada entre 1789 e 93, alvo de expropriações, conhecedora de dificuldades nunca antes sentidas na emigração, endividada e sempre aberta a receber prebendas dos governos, tentando aumentar os impostos e direitos sobre o povo, que odeia. O que é retribuído por este, aliás. O ressentimento existe em cada página do livro. O ódio que alimenta Julien contra toda a nobreza que o recebe em casa e que lhe dá a perspectiva de ascensão social é disso testemunho. Mas a nobreza sabe que poderá perder a sua prevalência política e social e, para a evitar, nada melhor do que imitar o liberalismo, seu inimigo, criando condições para eleições, jogando o jogo da política e comprando apaniguados, apoiando-se na igreja e no exército. De Mole, opõe-se a um golpe de estado para restabelecer um governo mais radical que poderia fazer entrar em guerra a França contra a Áustria e a Prússia ou mesmo contra a Inglaterra. Para quê criar um exército de leais ao absolutismo se depois de morrerem os soldados, vinham outros e outros, acabando o exército de ser composto, se isso acontecer, por camponeses? É este o terror da nobreza; que as armas se virem contra ela. Lutar contra a revolução, substituindo 1789? Não seria possível. Aqui está a clarividência de Stendhal e uma lembrança do absolutista De Maistre: «lutar contra a Revolução é o mesmo que tentar engarrafar o lago de Genebra e colocá-lo numa adega!»

António Luís Catarino

Coimbra 31 de Agosto de 2020