quarta-feira, março 25, 2020

«A Memória e o Fogo» e «O Socialismo Selvagem», de Jorge Valadas

Resultado de imagem para jorge valadas charles reeveResultado de imagem para jorge valadas charles reeve

Atenção que vamos ler Pessoa pelo punho de Jorge Valadas: «Entre o trabalhador do cérebro, como lhe chamam, e o trabalhador do braço não há identidade nem semelhança: há uma profunda, uma radical oposição. O que é certo é que entre um operário e um macaco há menos diferença que entre um operário e um homem realmente culto. O povo não é educável, porque é povo. Se fosse possível convertê-lo em indivíduos, seria educável, seria educado, porém não seria povo. O ódio à ciência, às leis naturais, é o que caracteriza a mentalidade popular. O milagre é o que o povo quer, é o que o povo compreende. Que o faça Nossa Senhora de Lourdes ou de Fátima, ou que o faça Lenine, nisso só está a diferença. O povo é fundamentalmente, radicalmente, irremediavelmente reaccionário». 

Este lindo extracto escrito pelo poeta é retirado do seu ensaio, inacabado é certo, «Sobre a Igualdade» e espelha, para além do conservadorismo obtuso do «pensador», o que as elites burguesas pensavam do seu povo, também ele ilustrado pelo meio tonto e servil «Zé Povinho» de Bordalo. Ora, «A Memória e o Fogo» actualizado por Jorge Valadas em 2010 e editado pela Letra Livre, prefaciado por Júlio Henriques, tenta, e consegue, mostrar-nos um povo que nunca se dobrou mesmo nas maiores tempestades sociais e políticas a que os séculos XIX e XX assistiram. Jorge Valadas apresenta-nos o inverso da famosa brandura portuguesa, pela visita guiada aos clubes e às colectividades operárias do século XIX, aos sindicatos revolucionários, às greves violentas e armadas de operários e às manifestações de rua retratadas, também, pelo fotógrafo Joshua Benoliel. 

O autor começa o seu livro por uma constatação tão verdadeira, quanto estranha: Portugal não tem uma tradição de literatura utópica. Tanto mais estranho, porquanto somos conhecidos por viagens intrépidas e conhecedores de costumes e usos estrangeiros e longínquos. A haver literatura utópica ela apareceu-nos pelas mãos dos anarquistas, dando o exemplo de «Irmânia», de Ângelo Jorge, que o escreveu em 1912, intitulando-se livre-pensador, vegetariano, naturista, e partidário da Revolução Social à boa maneira de Kropotkine. A personagem é Manfredo que em contacto com os habitantes de Irmânia vai descobrindo um novo mundo e que contrasta com as «taras» da sociedade vigente. Lembramo-nos igualmente que os anos de 1911 e 1912 foram anos de chumbo para a República com as chamadas greves contra a fome iniciadas no Alentejo rural e contagiadas rapidamente ao operariado de Lisboa. A novel GNR reprimiu-as com o resultado de 29 mortos só num dia, centenas de feridos e milhares de prisões. 

Até 1933, e alguns anos depois, os anarquistas e os sindicalistas-revolucionários não pararam um só dia de luta, distribuindo propaganda, escolarizando e acudindo aos seus associados dos clubes e associações semilegais, imprimindo A Batalha, A Aurora, e outros jornais. Caso curioso: o Partido Comunista Português, nascido em 1921, é um caso raro no panorama da luta operária internacional, sendo que nasceu da Liga Maximalista de influência anarco-comunista. Bento Gonçalves não terá conseguido controlar algumas ideias libertárias que ainda permaneciam nas bases e na acção do partido. Só com Álvaro Cunhal é que aconteceu uma viragem definitiva para o marxismo-leninismo. 

Um dos parágrafos mais interessantes é a desmontagem que Jorge Valadas faz dos mitos sebastianistas e do que é «ser português» que teimam em não nos deixar pela mão de Eduardo Lourenço, José Gil e outros aprendizes de filósofos. Porquê? Em todos estes trabalhos nem uma só linha para a luta de classes protagonizadas, sem interrupção, pelas «classes perigosas» portuguesas. A luta social está terminantemente afastada destes. Nem mesmo Antero, Eça, Ortigão, mais tarde Aquilino ou Ferreira de Castro, são peças dos seus estudos, enquanto agitadores sociais. Jorge Valadas, lembra neste livro interessantíssimo que quer Antero, quer Eça, foram fundadores do Partido Socialista (nada tendo a ver com o hodierno) e conheceu os trabalhos da AIT e da I Internacional.

Já «O Socialismo Selvagem», de Jorge Valadas, que assina com o pseudónimo de Charles Reeve, é uma obra de mais fôlego. Editado pela Antígona em 2018, traduz e sintetiza a luta operária desde 1848 até aos nossos dias, apontando as vitórias, as expectativas de futuro e, principalmente, as derrotas de uma classe que protagonizou um verdadeiro momento de modernidade em dois séculos. A Grande Revolução de 1789/93, em que a Comuna foi esmagada pelo Terror de Robespierre para que o povo não fizesse o «seu» próprio terror, a «Conjura dos Iguais», de Babeuf e Buanarroti e dos enráges e dos sans-culottes, a Revolução de 1848, a Comuna de 1871, a Rússia e os Sovietes de 1917, Alemanha de 1918/21 e os seus Conselhos Operários, a Áustria de 1919 e a Comuna de Viena, a Espanha de 1936/39 a CNT/FAI e o POUM, o Maio de 68, Revolução Portuguesa de 1974/75 e os Zapatistas. O denominador comum a estas jornadas: a procura de autonomia, de independência, de organização de base e de insubmissão perante as burocracias. Soluções que passavam pela luta pela emergência de Conselhos Operários e produtores. Nomes e ideias são passados a pente fino como as de Marx, Kropotkine, Bakunine, Anton Pannekoek, Voline, Archinov, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Lenine, Kautsky, Noske, Otto Ruhle, Karl Korsch, Durrutti, Internacional Situacionista, Andreu Nin, etc…etc..

Nesta busca incessante pelas causas das derrotas existe, segundo Charles Reeve/Jorge Valadas, uma linha que vai até aos dias de hoje. O desejo ininterrupto de emancipação dos trabalhadores através da sua auto-organização, sem autoritarismos e sem dirigismos. Daí, o autor realçar o papel importante de uma obra publicada nos idos de 30, de Henk Canne-Meijer que se deve recuperar com toda a atenção e, quiçá, adaptá-la aos tempos modernos. Trata-se de «Princípios de Produção e Distribuição Comunista» que se pode ler no site «Bataille socialiste». Que os movimentos Occuppy, Carré Rouge, La Nuit Debout, e outros, muitos outros que vierem, lhe dêem bom uso. Como disse Harendt: «O sistema dos Conselhos não encontrou ainda a sua teoria e permanece inteiramente por experimentar». O autor finaliza com uma frase dos jovens de Carré Rouge que terá todo o sentido: «Eis-nos chegados ao que começa!».
Imperdíveis, estes dois livros.

António Luís Catarino
Coimbra, 25 de Março de 2020

terça-feira, março 24, 2020

O Fim da Deriva Editores pela Lusa. Há dois anos foi assim...

Logótipo: Gémeo Luís

https://tvi24.iol.pt/sociedade/08-03-2018/o-fim-da-editora-deriva?utm_source=facebook%26utm_medium%3Dsocial%26utm_campaign%3Dshared_site&fbclid=IwAR1at8Yz7NTCrjL3zp05RFhVpt8OmaMy83dEQ8JD3u7Plkzoed8qNgFVKsE

Foi há dois anos e não retiro uma só palavra do que então disse à Lusa. É evidente que teria mais nomes que me ficaram na memória e que aproveito para citar aqui e agora. Talvez um dia eu faça a história da Deriva e alguns dos seus momentos mais ou menos gloriosos, mas de uma dedicação de 15 anos em que se firmaram grandes amizades e não menos decepções. Mas agora é o tempo de agradecer, tudo junto, que é mais bonito:
Catarina Nunes de Almeida, Joaquim Castro Caldas, Marilar Aleixandre, Pedro EirasAntónio Alves MartinsPedro Teixeira Neves, João Pedro Mésseder, Rui Pereira, Vicente Romano, Xavier Queipo, Gonzalo Navaza, Kenneth White, Paulo Kellerman, Miguel Carvalho, Isabel Pereira Coutinho, Santiago Lopez-Petit, Luís Mourão, Jean-Marc Rouillan, Patrick Raynal, Xurxo Borrazás, Antón Riveiro Coello, John Zerzan, Peter Lamborn Wilson, Ramón Caride Ogando, Regina Guimarães, José Manuel PurezaHenrique Manuel Bento FialhoJoão Mineiro, Bruno Moraes Cabral, Ana Estevens, Bruno Monteiro, João Carlos Louçã, João Camargo, Maria Helena Marques, Sofia Lai Amândio, Pedro Abrantes, João Teixeira Lopes, Jorge Bastos da Silva, Teresa Martins de Oliveira, Gonçalo Vilas-Boas, Jean-Pierre Sarrazac, Pascal Quignard, Antoine Compagnon, Jean-Claude Pinson, Stephane Mallarmé, Stenvenson, Coleridge, Wyndham Lewis, Olivier Py, Anselm Kiefer, Carlo Ginzburg, Xurxo Borrazás, João Paulo Sousa, Nuno Barros, Ludwig Wittgenstein, João José Almeida, Nuno Venturinha, Michel Pialoux, Christian Corouge, Mikhail Bakhtin, Elfriede Jelinek, Maria Leonor Figueiredo, Filipa Leal, Maria Sofia Magalhães, Luis Maffei, Hugo Neto, Catarina Costa, Aurelino Costa, João Queirós, Inês Brasão, José Ricardo NunesRicardo Gil Soeiro, Ricardo Romero, Florencia Abbate, Mariana Rei, João Rodrigues, Nuno Teles, Carla Baptista, Filipa Subtil, Colaboração com o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da FLUP, TEatro Ensaio: Pedro Estorninho e Inês Ferreira Pereira Leite, Instituto de Sociologia da FLUP, Le Monde Diplomatique: Sandra Monteiro, Nuno Teles, Bruno Monteiro, João Rodrigues, Costas Lapavitsas, Eugénia Pires, José Castro Caldas, José Guilherme Gusmão, Maria Mariana Mortágua, Mark Weisbrot, Maurice Lemoine, Maurizio Lazzarato, Octávio Teixeira, Rafael Correa, Raoul-Marc Jennar, Renaud Lambert, Rosário Caetano, Sara Rocha, Wolfgang Streek, Akram Belkaïd, Alain Gresh, Alexeï Malachenco, Benoît Bréville, Dominique Vidal, Feurat Alani, Hana Jaber, Hiccham Alaoui, Ibrahim Warde, Jean-Pierre Séréni, Julien Théron, Laurent Bonelli, Nabil Mouline, Olivier Zajec, Patrick Baudouin, Peter Harling, Philippe Leymarie, Pierre Conesa, Serge Halimi, Vicken Cheterien, Carla Baptista, Carla Martins, Carlos Camponez, Frederico Pinheiro, Jacinto Godinho, Joao Ramos de Almeida, Joaquim Fidalgo, José Goulão, José Luís Garcia, Liliana Pacheco, Maria João Silveirinha,, Pedro Cerejo, Sara Meireles Graça, Vasco Ribeiro, Alfredo Margarido, Ana Santos, Cláudia Castelo, Diogo Ramada Curto, Elsa Peralta, Irene Flunser Pimentel, Isabel Castro Henriques, João Leal, José Borges Reis, José Manuel Sobral, Luís Bernardo, Manuela Ribeiro Sanches, Miguel Bandeira Jerónimo, Nuno DomingosPaula Godinho, Pedro Sanches Duarte, Sílvia Correia, Victor Correia, AlexandreAbreu,Carlos Santos, Dominique Lévy, Eva Illouz, Frédéric Lordon, Gérard Duménil, Ignacio Ramonet, João Rodrigues, Luís Bernardo, Owen Jones, Patrick Vassort, Pedro Bingre do Amaral, Pierre Rimbard, Ricardo Paes Mamede, Vincent Gayon, Yvon Quiniou, Prefaciadores: Isabel do Carmo, Viale Moutinho, Valente de Oliveira, Manuel Bragado Rodríguez e muitos outros... Ilustradores: Gémeo Luís, Manuela São Simão, Emílio Remelhe, João Maio Pinto, Miguelanxo Prado. Participação do II Centenário das Guerras Peninsulares. I e II Derivas de Maio, Corrente d'Escritas, Publicação das actas dos Encontros de Literatura para a Infância e Juventude etc.etc.. Houve ainda prémios literários e traduções para a Europa. Esta lista será continuamente observada, não vá faltar alguém ou alguma instituição... Não se contam aqui as intervenções em apresentações de livros, de convidados vários e de participações várias de cumplicidade feita. Um abraço para livreiros que estiveram sempre ao nosso lado: Letra Livre, Livraria Utopia (Herculano Lapa), Gato Vadio (Isabel CamarinhaJúlio Gomes e Cesar Figueiredo), Livraria Poetria, Miguel de CarvalhoViriato PortoLuís Filipe Sarmento, Isabel Ramalhete, João Paulo Vaz, Dina Almeida, Helena Topa, Bruno Monteiro...
ColabPedro Ferreira, Ana Sílvia.

quarta-feira, março 18, 2020

O abismo sem fundo da desumanidade. «À Beira do Abismo. A Europa 1914-1949», de Ian Kershaw


Após a leitura deste livro dou por mim a pensar que o julgamento de Nuremberga poderia ter ido mais longe e a desnazificação iniciada em 1945 terá sido um enorme logro, devido à emergência da Guerra Fria. «À Beira do Abismo. A Europa 1914-1949», de Ian Kershaw é um monumental documento histórico, com fontes bem sólidas notando-se que o autor teve acesso a processos desclassificados após o fim da I e II Guerra Mundiais. Para além disso, mostra-se imparcial, mas nunca para com os totalitarismos sabendo, neste jogo, equilibrar as diferenças de objetivos entre quem é atacado e quem ataca. Não perdoa o nazismo. Não esquece o massacre de 60 milhões de mortos, principalmente civis, nem a desmesura dos 20 milhões de vítimas soviéticas. Não esquece igualmente e faz-nos lembrar, como uma ferida ainda aberta sobre a humanidade, que antes dos massacres perpetrados pelas Waffen SS a Leste da Europa os fascismos da Hungria, da Polónia, da Roménia, da Ucrânia, da Croácia ou do Báltico já tinham iniciado a caça brutal à esquerda e às minorias étnicas, salientando-se os ciganos e os judeus como as principais vítimas. Não esquece a realidade brutal dos campos de trabalho e de extermínio nazis. Também não esquece e não nos faz esquecer os jogos de bastidores entre as democracias ocidentais e o nazismo e entre aquelas e a URSS. A fraqueza de uns foi o impulso assassino de outros. De resto, há algumas novidades neste processo histórico, fruto da possibilidade do autor em ter acesso a documentos desclassificados, como já dissemos. Ficamos com ideias mais claras sobre alguns factos envoltos ainda em nebulosas. Por isso vale a pena ler este «À Beira do Abismo». 

Dou a voz a Ian Kershaw (págs. 426-427)
«Esta queda sem precedentes (o abismo da desumanidade) era inevitável numa Europa assolada pelos ódios étnicos e de classe, pelo racismo radical, pelo antissemitismo paranoico e pelo nacionalismo fanático. Entrar em guerra movido pelo ódio e apostado em erradicar – não apenas em derrotar – o inimigo foi a receita para o colapso de todos os padrões mínimos de humanidade. Foi o caso, em geral, dos soldados que combateram no Leste, mas muito menos na Europa Ocidental. A guerra total foi o ingrediente necessário para converter os antagonismos em matanças numa escala quase inconcebível.
Na guerra, o ato de matar no campo de batalha adquire um ímpeto próprio. A Segunda Guerra Mundial não foi exceção, porém, nas campanhas da Europa Ocidental e do Norte de África, os combates foram, em geral, relativamente convencionais. Na Europa de Leste, as coisas foram diferentes. A crueldade, a indiferença e o mais puro desprezo pela vida humana foram inacreditáveis. Os combates integraram-se numa guerra racial, que derivou diretamente do duplo objetivo da liderança nacional-socialista da Alemanha: conquista colonial e limpeza racial.
O inferno que daqui resultou para soldados e civis foi essencialmente um produto da ideologia: a questão de quem devia viver ou morrer foi primariamente ideológica.»

Mas, à parte, das matanças, dos massacres, das torturas e do extermínio, houve factos históricos importantíssimos após 1945 que o autor traz à superfície depois de estarem afundados em arquivos bolorentos durante quase 75 anos. As posições políticas em Teerão, em Ialta e em Potzdam, a Guerra Fria, a fuga dos nazis e os seus cúmplices, o ouro nazi nos bancos suíços, as Resistências e algumas das suas divisões e traições, o papel do Ocidente na entrega da Checoslováquia aos alemães em 1939 e do incómodo chamado Polónia, o papel da hierarquia da Igreja Católica e dos Protestantes (apresenta mais dados do que já sabíamos), a posição do clero inconformado, o papel hipócrita de Portugal, de Espanha e da Turquia entre muitos outros, como a duplicidade da Suécia e da Dinamarca. As equipas de combate na frente leste onde estiveram 20 mil holandeses, entre belgas e luxemburgueses voluntários nazis (aliás, o número dos países que estiveram no bloqueio a Estalinegrado foi intrigante tal a sua quantidade). O Plano Marshall e a ocupação soviética a Leste.
Um facto que não me sai da cabeça e que é quase uma nota de rodapé deste livro: dos 18 milhões de soldados da Wermascht, só há documentos de 100 soldados que ajudaram judeus a esconderem-se ou a fugirem. É muito pouco. Demasiado pouco. Conta-se a história verdadeira de Wilm Hosenfeld, ex-membro do Partido Nazi, oficial, ex-SA que se rebelou contra o horror do que viu e ajudou o músico polaco WȽadisȽaw Szpilman que se tornou a base do filme «O Pianista». Pelo menos este oficial resgatou, infimamente, é certo, a Alemanha. Perguntou ele à mulher numa carte escrita em 1942 «Será que o Diabo assumiu a forma humana?», respondendo logo de seguida: «Não tenho a mínima dúvida!».

A partir da página 492 contam-se uma das marcas europeias do século XX nas duas guerras: as enormes deslocações humanas de refugiados de guerra: 8 milhões no Leste europeu, 2 milhões da Guerra Civil espanhola, mais dois milhões de franceses do norte ocupado, para a região de Vichy, de milhões de refugiados judeus para a América e Palestina fugindo do extermínio e por aí fora, não contando com os milhões de ucranianos colaboracionistas, tchetchenos, georgianos e outros que foram deslocados para o norte da Rússia, para além das minorias alemãs existentes após o retalho da Alemanha pelas potências vencedoras (aliás, os contritos alemães para pagar o esforço de guerra no Leste foi enorme e tratado aqui num artigo que fiz sobre a obra de Herta Müller, uma alemã deslocada para a Roménia). Diz Ian Kerschaw: «As estatísticas das deslocações demográficas são, como todos os dados macroeconómicos, totalmente impessoais. Não dizem nada sobre a morte, a destruição, o sofrimento e a miséria».

 São de análise sistemática: o aumento da influência dos partidos operários, o decréscimo dos direitos das mulheres após 1945 confinadas novamente ao lar, uma mobilidade social mais pequena do que seria de esperar e um refazer das elites anteriormente dominantes, a panóplia de organizações defensoras do mercado livre que se instalaram no mundo com os seus efeitos que todos conhecemos a partir do relatório Beveridge e Bretton Woods: o FMI, o Banco Mundial, O GATT e o Estado Providência apoiado e construído a partir dos conservadores ingleses e da democracia-cristã alemã e italiana. Vinha aí a Cortina de Ferro (segundo o conceito de Churchill) e os 30 Gloriosos Anos.

Mas há mais a partir daqui…e talvez seja o que talvez nos anime a continuar a leitura, mesmo crentes que sabemos tudo sobre a época pós-45. Talvez este livro nos dê uma ajuda preciosa e muito, muito, preocupante sobre o leitmotiv da Guerra.

António Luís Catarino
Coimbra, 18 de março de 2020

quinta-feira, março 12, 2020

Uma língua de assombro. «Assim Nasceu uma Língua», de Fernando Venâncio

Assim Nasceu Uma Língua

Só consegui comprar a 2ª edição de «Assim Nasceu uma Língua» de Fernando Venâncio o que me leva a pensar que os portugueses ainda não estão completamente divorciados da sua língua, mesmo com os atropelos de que tem sido alvo (espero, neste artigo, não cometer algum). Outro facto de realçar: quando o adquiri, estava em 1º lugar nas vendas da livraria, o que se pode já considerar um feito bonito de se ver, visto ultrapassar algumas «bestas céleres» do mercado editorial.

O livro em si é magnífico. Dá-nos pistas interessantíssimas sobre a morfologia, o étimo, a sintaxe, a fonologia e a história do português. Lê-se muito bem, mas proponho que o leitor atento se muna de um lápis para sublinhar algumas questões francamente importantes para serem conhecidas e apreendidas. Nota-se que foi um trabalho de uma vida. Venham outros livros...

Como falávamos antes do latim? Fernando Venâncio aponta-nos para um eventual dialecto com algumas regras gramaticais definidas pelo uso, lá para 600 a.C.. Com o latim e o domínio romano, foi-se consolidando uma escrita e um falar comum da Galécia Magna com o famoso romance que mais não seria que o galego-português. Mas o autor avisa-nos de alguns factos que devemos interiorizar: nem tudo o que parece é (como dizia o outro, mas ao contrário), ou seja, nem todas as palavras que usamos vêm do latim, embora estejamos convencidos que sim, pela grafia ou sonoridade. A Geografia também acompanha a História: a Galécia Magna estaria compreendida nas fronteiras actuais da Galiza até ao Vouga fazendo fronteira sul com este rio. Ou seja, o português não era mais do que o galego. Falávamos, pois, galego. Com a formação do condado e mais tarde com a emergência de Portugal, fomos apurando um modo de falar que se foi separando paulatinamente do galego, com a introdução da nasalização dos ditongos ou com a síncope do n e do l em muitas palavras. Continuaram os diminutivos em inho, tal como hoje ainda, mas a separação seria uma realidade. À medida que íamos cavalgando para sul, as coisas sofreram uma transformação histórica, geográfica e linguística.

A partir de 1400, com a dinastia de Avis e mesmo com as guerras com Castela, o castelhano foi-se impondo entre nós, voltando-se a introduzir o n e o l em algumas palavras, mas recusando o desaparecimento dos ditongos ão e ãe ou até o ou, o que irritava alguns puristas da língua, afirmando inclusive que estes dariam uma «sonoridade canina» que desfeavam a harmonia da nossa língua e dificultava a compreensão do português por estrangeiros! Já o plural destes ditongos nasalados é outra saga. Ora uns acabam em ões ou ãos ou ães. É uma espécie de «à vontade do freguês». Segundo Fernando Venâncio, o seguimento da norma castelhana daria mais solidez à nossa língua, afirmando até um sonoro «Bem feito!» a algumas opções nossas. Portanto, a aproximação e convivência com Espanha tem a ver não só com aspectos políticos, mas também de moda. A corte espanhola era um chamariz para poetas e artistas portugueses, apesar da ocupação entre 1580 e 1640. 

O autor dá-nos histórias extraordinárias, «espantosas» ou até «esquisitas» sobre os falsos amigos que povoam o actual galego e português e não é por acaso que coloco as duas palavras entre aspas. O leitor que descubra socorrendo-se de um dicionário online e verá até que ponto pode ser embaraçoso utilizar estes termos na Galiza. E até a palavra «embaraço» tem outra conotação no castelhano!

Quem queria esta mudança que nos afastou (definitivamente?) da Galiza? Segundo o autor, o eixo Coimbra-Lisboa que se queria afastar do falar patego e antiquado do galego e do falar nortenho. Aproximámo-nos, pois, da Espanha, da Inglaterra (através da casa de Lancaster, penso eu) e da França no século XVIII e XIX, onde fomos buscar imensos francesismos.

Bom, esta apresentação não mostra a extrema vitalidade da obra de Fernando Venâncio. Poderia dar aqui exemplos que nos admirariam sendo repletos de curiosidades e exemplos (as chamadas «estações de serviço»), mas seria fastidioso aqui enumerá-las, nem é esse o objectivo destas considerações, mas um conselho de amigo: comprem-no quanto antes e leiam-no com prazer.

António Luís Catarino
Coimbra, 12 de março de 2020