Após a leitura deste livro dou por mim a pensar que o
julgamento de Nuremberga poderia ter ido mais longe e a desnazificação iniciada
em 1945 terá sido um enorme logro, devido à emergência da Guerra Fria. «À
Beira do Abismo. A Europa 1914-1949», de Ian Kershaw é um monumental
documento histórico, com fontes bem sólidas notando-se que o autor teve acesso
a processos desclassificados após o fim da I e II Guerra Mundiais. Para além
disso, mostra-se imparcial, mas nunca para com os totalitarismos sabendo, neste
jogo, equilibrar as diferenças de objetivos entre quem é atacado e quem ataca.
Não perdoa o nazismo. Não esquece o massacre de 60 milhões de mortos,
principalmente civis, nem a desmesura dos 20 milhões de vítimas soviéticas. Não
esquece igualmente e faz-nos lembrar, como uma ferida ainda aberta sobre a
humanidade, que antes dos massacres perpetrados pelas Waffen SS a Leste da
Europa os fascismos da Hungria, da Polónia, da Roménia, da Ucrânia, da Croácia ou
do Báltico já tinham iniciado a caça brutal à esquerda e às minorias étnicas,
salientando-se os ciganos e os judeus como as principais vítimas. Não esquece a
realidade brutal dos campos de trabalho e de extermínio nazis. Também não
esquece e não nos faz esquecer os jogos de bastidores entre as democracias
ocidentais e o nazismo e entre aquelas e a URSS. A fraqueza de uns foi o
impulso assassino de outros. De resto, há algumas novidades neste processo histórico,
fruto da possibilidade do autor em ter acesso a documentos desclassificados,
como já dissemos. Ficamos com ideias mais claras sobre alguns factos envoltos
ainda em nebulosas. Por isso vale a pena ler este «À Beira do Abismo».
Dou
a voz a Ian Kershaw (págs. 426-427)
«Esta queda sem precedentes (o abismo da desumanidade) era
inevitável numa Europa assolada pelos ódios étnicos e de classe, pelo racismo
radical, pelo antissemitismo paranoico e pelo nacionalismo fanático. Entrar em
guerra movido pelo ódio e apostado em erradicar – não apenas em derrotar – o inimigo
foi a receita para o colapso de todos os padrões mínimos de humanidade. Foi o
caso, em geral, dos soldados que combateram no Leste, mas muito menos na Europa
Ocidental. A guerra total foi o ingrediente necessário para converter os
antagonismos em matanças numa escala quase inconcebível.
Na guerra, o ato de matar no campo de batalha adquire um
ímpeto próprio. A Segunda Guerra Mundial não foi exceção, porém, nas campanhas
da Europa Ocidental e do Norte de África, os combates foram, em geral,
relativamente convencionais. Na Europa de Leste, as coisas foram diferentes. A
crueldade, a indiferença e o mais puro desprezo pela vida humana foram
inacreditáveis. Os combates integraram-se numa guerra racial, que derivou
diretamente do duplo objetivo da liderança nacional-socialista da Alemanha:
conquista colonial e limpeza racial.
O inferno que daqui resultou para soldados e civis foi
essencialmente um produto da ideologia: a questão de quem devia viver ou morrer
foi primariamente ideológica.»
Mas, à parte, das matanças, dos massacres, das torturas e do
extermínio, houve factos históricos importantíssimos após 1945 que o autor traz
à superfície depois de estarem afundados em arquivos bolorentos durante quase
75 anos. As posições políticas em Teerão, em Ialta e em Potzdam, a Guerra Fria,
a fuga dos nazis e os seus cúmplices, o ouro nazi nos bancos suíços, as
Resistências e algumas das suas divisões e traições, o papel do Ocidente na entrega
da Checoslováquia aos alemães em 1939 e do incómodo chamado Polónia, o papel da
hierarquia da Igreja Católica e dos Protestantes (apresenta mais dados do que
já sabíamos), a posição do clero inconformado, o papel hipócrita de Portugal,
de Espanha e da Turquia entre muitos outros, como a duplicidade da Suécia e da
Dinamarca. As equipas de combate na frente leste onde estiveram 20 mil
holandeses, entre belgas e luxemburgueses voluntários nazis (aliás, o número dos
países que estiveram no bloqueio a Estalinegrado foi intrigante tal a sua
quantidade). O Plano Marshall e a ocupação soviética a Leste.
Um facto que não me sai da cabeça e que é quase uma nota de
rodapé deste livro: dos 18 milhões de soldados da Wermascht, só há
documentos de 100 soldados que ajudaram judeus a esconderem-se ou a fugirem.
É muito pouco. Demasiado pouco. Conta-se a história verdadeira de Wilm
Hosenfeld, ex-membro do Partido Nazi, oficial, ex-SA que se rebelou contra o horror
do que viu e ajudou o músico polaco WȽadisȽaw
Szpilman que se tornou a base do filme «O Pianista». Pelo menos este oficial
resgatou, infimamente, é certo, a Alemanha. Perguntou ele à mulher numa carte
escrita em 1942 «Será que o Diabo assumiu a forma humana?», respondendo logo de
seguida: «Não tenho a mínima dúvida!».
A partir da
página 492 contam-se uma das marcas europeias do século XX nas duas guerras: as
enormes deslocações humanas de refugiados de guerra: 8 milhões no Leste
europeu, 2 milhões da Guerra Civil espanhola, mais dois milhões de franceses do
norte ocupado, para a região de Vichy, de milhões de refugiados judeus para a
América e Palestina fugindo do extermínio e por aí fora, não contando com os
milhões de ucranianos colaboracionistas, tchetchenos, georgianos e outros que
foram deslocados para o norte da Rússia, para além das minorias alemãs existentes
após o retalho da Alemanha pelas potências vencedoras (aliás, os contritos
alemães para pagar o esforço de guerra no Leste foi enorme e tratado aqui num
artigo que fiz sobre a obra de Herta Müller, uma alemã deslocada para a Roménia).
Diz Ian Kerschaw: «As estatísticas das deslocações demográficas são,
como todos os dados macroeconómicos, totalmente impessoais. Não dizem nada sobre
a morte, a destruição, o sofrimento e a miséria».
São de análise sistemática: o aumento da
influência dos partidos operários, o decréscimo dos direitos das mulheres após
1945 confinadas novamente ao lar, uma mobilidade social mais pequena do que seria
de esperar e um refazer das elites anteriormente dominantes, a panóplia de
organizações defensoras do mercado livre que se instalaram no mundo com os seus
efeitos que todos conhecemos a partir do relatório Beveridge e Bretton Woods: o
FMI, o Banco Mundial, O GATT e o Estado Providência apoiado e construído a
partir dos conservadores ingleses e da democracia-cristã alemã e italiana.
Vinha aí a Cortina de Ferro (segundo o conceito de Churchill) e os 30 Gloriosos
Anos.
Mas há mais a partir daqui…e talvez seja o que talvez nos anime a
continuar a leitura, mesmo crentes que sabemos tudo sobre a época pós-45.
Talvez este livro nos dê uma ajuda preciosa e muito, muito, preocupante sobre o
leitmotiv da Guerra.
António Luís
Catarino
Coimbra, 18 de
março de 2020