O estado morreu, o
cristianismo também, a ciência finge e Onfray não se sente lá muito bem.
«Decadência – O declínio
do Ocidente», de Michel Onfray
Que têm a ver as matérias fecais elevadas a arte de Piero
Manzoni, farto de ser desconhecido, e que em 1961 as colocou à venda em latas
de conserva numeradas e assinadas, que repentinamente tiveram um êxito absoluto
e sendo hoje vendidas por colecionadores particulares a centenas de milhar de
euros, com a possível beatização de S. Cirilo proposta por Bento XVI? E com a
decapitação de Luís XVI e Maria Antonieta?
Aparentemente, nada. Mas na perspetiva da decadência
ocidental de Onfray, tem. Arte, Filosofia e Política. Manzoni, após as
declarações de morte da Arte nos finais do século XIX e inícios do século XX e
mesmo que excreções humanas já tivessem sido usadas em quadros, arrisca-se a
vender a sua merda por uns trocos (e que trocos!), S. Cirilo, bispo de
Alexandria manda assassinar Hipatia em março de 415, destruindo uma biblioteca
plena de textos clássicos e é em 2015 que Bento XVI propõe a beatificação desse
grande bispo. A decapitação de Luís XVI inicia a descristianização e a
degenerescência do próprio estado ocidental. A partir daí, tudo será possível
em termos de autoritarismo legitimado pelo Iluminismo e pelo Humanismo. Hoje,
nada nos dizem os conceitos de Liberdade, Fraternidade e Igualdade. Portanto,
advém igualmente a morte das Luzes. Hoje impera o vazio, o consumismo
capitalista, o hedonismo serôdio, o egoísmo, as catedrais do dinheiro a criação propositada de crises sucessivas, a economia do desperdício. Mas nunca o fim da História
segundo Fukuyama. A História é real, não a significação nem a simbologia do
real. As ideias, porque inócuas hoje a Ocidente, submetem-se a outras
realidades bem visíveis. A vitalidade ocidental está numa crise sem solução.
Outras civilizações (Huntigton) estão num processo de grande vitalidade,
nomeadamente os islâmicos, os chineses e os hindus. Substituir-nos,
provavelmente sem darmos por isso, é exatamente o que fizemos ao longo dos
tempos em que os Estados de Constantino e Teodósio se abraçaram ao Cristianismo
de S. Paulo (que efetivamente se afasta dos Evangelhos e constrói uma igreja
dominadora, inquisitorial e assexuada) a 3 séculos de distância da morte de
Jesus. Foram dois mil anos de imperialismo, de submissão de povos, de massacres
e guerras sem fim que culminam num século XX de horror nunca antes visto.
Não pensem que Onfray cai na ratoeira do alemão Oswald
Spengler autor que, nos anos vinte, nos brindou com «O Declínio do Ocidente»,
embora o nosso autor nos consiga dar uma perspetiva clara e quase asfixiante
dessa mesma decadência. Aliás, a sua tese de doutoramento foi exatamente sobre
Spengler, mas recusa-o, obviamente, por este ser uma das bases filosóficas de
sustentação do nacional-socialismo alemão. Declara o seu interesse por Samuel
Huntigton em «O Choque das Civilizações» e em outras obras citadas
abundantemente desde há mais de 2000 anos, não escondendo a sua simpatia por
Epicuro e Lucrécio. Embora haja mais. Mesmo de livros clássicos que nunca tínhamos pensado existir.
As 624 páginas do livro não devem demover-vos de o ler.
Aliás, se se começa não se consegue travar a fluidez do discurso e do
pensamento de Onfray. Estejamos ou não de acordo com ele e várias vezes estive
em desacordo. Onfray não é um filósofo no sentido clássico do termo (aliás, a
filosofia ocidental morreu com o estruturalismo, segundo ele). É, antes demais, um pensador, mas um
pensador rigoroso, um historiador genealógico, que demonstra o seu pessimismo
através de factos e do estudo de leituras. O fim próximo que ele vê é o transhumanismo,
purgante para uma visão não condizente com o otimismo ainda reinante que leva
os tolos a dizerem que tudo se resolve com a Ciência, por futuros radiosos em
que só se morre por acidente e em que não há trabalho, mas riqueza distribuída igualitariamente.
Palavras de Michel Onfray: «A Europa está para oferta ou para venda.Nem eu
nem o meu leitor contemporâneo veremos quem a tomará e a quem esta velha coisa
será vendida. No entanto, vários pretendentes parecem hoje notáveis. O judaico-cristianismo
está esgotado; é um poder cujo tempo já passou. A estrela cadente volta a cair,
faz parte da ordem do seu ser. A demografia testemunha o movimento das coisas,
mas é uma disciplina de que os navegadores do real não querem ouvir falar: com
efeito, é a atividade que produz imagens fiéis da realidade, mas é uma ofensa
intelectual aos olhos dos que pensam que a realidade não existe e que,
sobretudo, não querem que exista. Contraria demasiado as suas ideias e preferem as
ficções que os tranquilizam nas verdades que os inquietam.»
Mas isto lê-se na pág. 558. Terão de ler as anteriores se
querem fruir este livro efetivamente bom.
António Luís Catarino
Coimbra, 2 de dezembro de 2019