Javier Cercas é
um «escritor de sucesso», seja lá o que for que isso signifique. Para esse
epíteto é necessário que o autor seja reconhecido com mais de 30 prémios
nacionais e internacionais (lá se encontram os jogos florais de escritores que
dão pelo nome de Correntes d’Escrita), seja traduzido pelo menos por cinco
línguas estrangeiras e seja considerado como possível Nobel. Ele tem tudo isso
e até mais. A capa do livro que eu li «El
Monarca de las Sombras» tem «Best Seller!» lá inscrito. Ainda tentei com a
unha do polegar direito descolá-lo, mas não, era mesmo uma inscrição na capa. Certezas
de editor, digo eu!
O autor escreveu antes, em 2001, «Os Soldados de Salamina» que descrevia o combate de um republicano
que, com a sua coluna, combatia os fascistas, falangistas e destacamentos
«mouros», sendo que o herói era aquele. Estava escrito, escrito estava. Nada a
fazer perante uma sociedade ainda hoje dividida em dois e cujos direitistas o
recriminaram por passar uma esponja sobre os crimes levados a cabo pelos
voluntários da II República, destacando os massacres perpetrados pelos
franquistas, exagerando-os. Javier Cercas prometeu a si próprio nunca escrever
um livro que «anulasse», pela ambiguidade ou suposta imparcialidade, que aliás
ele sempre recusou para com Franco, a mensagem de que a razão estava do lado da
República, fossem eles socialistas, comunistas, republicanos radicais,
anarquistas e os brigadistas internacionais abandonados mais tarde pelas
democracias ocidentais e pela URSS.
Seja. Mas esta posição louvável do autor aconteceu em 2001 e
num par de anos depois... estamos agora em 2017 (data da saída de «El Monarca de las Sombras») e muita
água passou debaixo das pontes. Assim, ele que nunca escreveria nada que
propusesse alguma condescendência para com o franquismo, viu-se no meio de uma
enorme hesitação em escrever, afinal, o que nunca disse que escreveria. Tratava-se
da sua família fascista e particularmente de um tio, Manuel Mena, cuja história era contada pela mãe dele, entre sombras
e dúvidas, entre silêncios e contradições. Manuel
Mena era falangista, um camisa azul
(também por lá os havia), seguidor fanático de Primo de Rivera e que tinha as suas contas a tratar com Franco de
quem não gostava. Morreu com 19 anos e quando, aos 17. se inscreveu no 3º Batalhão dos Tiradores de Ifni,
ainda brincava com a sobrinha mais velha, mãe de Javier Cercas. Eu compreendo a
sua necessidade em escrever esta história e lê-la com a atenção devida não indo
atrás da porcaria do Best-seller com que os editores afastaram alguns leitores. O homem é mesmo bom escritor, e a
história arrebatadora, mas adiante.
Manuel Mena
morreu aos 19 anos na Batalha do Ebro
que foi o corredor para a tomada final de Barcelona, sendo que Madrid resistia
ainda. Essa outra grande batalha pela posse da capital aconteceu após a Batalha de Teruel, onde esteve Manuel
Mena na linha da frente, tio-avô, portanto, de Javier Cercas. Foi ferido cinco
vezes, três das quais foi hospitalizado por declaração do médico de campanha.
As outras duas não se sabe como aguentou. Veio a casa aquando dos ferimentos
graves por uma semana. Na última antes do funeral, mostrava-se já farto da
guerra e custava-lhe ir outra vez para a frente de combate, sendo ele aos 19
anos um veteraníssimo da guerra e um jovem cansado. Não era por motivos
ideológicos, mas familiares como se poderá antever pela leitura do romance.
O labirinto que
travava Javier Cercas em busca de uma saída deu-se quando a bisavó de Manuel
Mena entendeu queimar todo o espólio dele. Nada restava a não ser um velho
retrato com farda de gala de alferes e medalhado com a mais alta condecoração
do exército rebelde. É nesse labirinto que nos entranhamos nas sombras que
ainda hoje existem em Espanha. Nos inquéritos a várias personagens o silêncio
imperava até que na estrada sinuosa dos vários arquivos Javier Cercas foi
deslindando, sem que, mesmo nesses documentos os erros de registos de acumulassem.
Manuel Mena, falangista, não morreu na Batalha do Ebro como se pensava. Aliás, militares
contemporâneos e generais de Franco não entendiam a sua estratégia. As duas Batalhas
mais sangrentas de Espanha (Teruel e Ebro) podiam ter sido evitadas poupando a
vida a 200 mil homens de ambos os lados, sendo que em Teruel perante um ataque
republicano que dividiria o sul franquista em dois, preferiu-se o combate quase
corpo a corpo, evitando-se uma retirada e posterior cerco pelo Norte. O mesmo
em Ebro: as forças republicanas acantonadas nas margens do Ebro, não barravam o
caminho para Barcelona. Bastava rondá-las e entrar por Aragão. Mas não, não era
incompetência de Franco, era, antes, a sua política de extermínio total dos inimigos que durou até 1975.
Javier Cercas quis saber da sua família. Ela aí está neste
livro, na aldeia de Iberhando no
Distrito de Badajoz, perto de Cáceres e com raízes conservadoras e direitistas
profundas. Mas para um leitor comum não deixa de ser literariamente muito
forçado para o tentar equiparar a Ulisses ou Aquiles ou mesmo Quixote, buscando
citações aqui e ali que demonstram o que «é o Homem». Manuel Mena escolheu o
seu lado numa extensa luta de classes, onde os menos pobres dos camponeses se
aliaram aos grandes e os mais pobres do pobres viram na República (mesmo com as
suas contradições e traições intestinas) uma porta aberta para a dignidade que
os operários exigiam há muito. Sim, o Homem é capaz do melhor e do pior, é tão
violento como promotor de solidariedades, a guerra é mesmo assim, a banalidade
da morte faz-nos anestesiar perante o mal (Javier
Cercas chega a nomear Harendt,
Ortega y Gasset e Unamuno), mas tanto Humanismo chega! Até porque sabemos que os dois últimos têm telhados de vidro... Mesmo na emoção
sentida da mãe de Manuel Mena que no seu funeral sem lágrimas, e com a saudação
romana, brada «Arriba España! Querido Manolo. Arriba España!» Um dos amigos de
Manuel Mena, que pertencia ao mesmo 3º Batalhão de Tiradores de Ifni desabafou
com Javier Cercas: «Una mierda la
guerra!». «Como morreu Manuel Mena? Com um tiro de espingarda que lhe
entrou pelas costas e alojou-se no peito, num morro que nada tinha de estratégico.
Morreu com dores terríveis e a gritar! Quando o levaram ao hospital de Bot, já
na Catalunha, não foi logo atendido porque não havia lugar para ele. Os quartos
do 1º andar estavam ocupados por majores, tenentes e coronéis, mais altos em
graduação mas com ferimentos de menor gravidade do que ele! Manuel Mena não
pertencia aos ricos! Esteve duas semanas abandonado, a agonizar, no rés-do-chão.»
Assim morreu Manuel
Mena de Iberhando, aos dezanove anos, cinco ferimentos em numerosas
batalhas levando possivelmente o fanatismo de Primo de Rivera com ele. Heróis?
Há heróis nas guerras?
António Luís Catarino
Delémont, Suíça, 29 de dezembro de 2019
Nota: a edição portuguesa é da Assírio e Alvim.