terça-feira, novembro 26, 2019
José Mário Branco - FMI
Eu sei, José Mário, que abjuraste este disco. Mas arrepiei-me a primeira vez que te ouvi a dizê-lo, a cantá-lo, a emocionar-te e a nós, a rasgar a nossa pele e a vergonha de não nos inquietarmos o suficiente. Hoje isto está uma pasmaceira, uma pulhice de primeira água. Tinhas razão, sim.
Herberto Helder dito por Luis Miguel Cintra
Deve haver poucos a dizerem a poesia de Herberto Helder como ele, Luís Miguel Cintra. É um prazer nosso ouvi-lo.
domingo, novembro 10, 2019
George Steiner e a tristeza do pensamento
Foto: Relógio D'Água |
A questão é esta: como é que um livro de 40 páginas nos pode, através de um poder de síntese notável e que só os melhores dispõem, agarrar de tal modo? George Steiner tem esse dom. Quando li o último livro de Rui Pereira «Pensar em tempos de não-pensamento», cuja ficha de leitura se encontra neste blogue em http://derivadaspalavras.blogspot.com/2019/10/foto-rui-gracio-editor-rui-pereira-tem.html tive a feliz ideia, na esteira das questões levantadas pelo Rui, ler, logo de seguida, este «Dez razões (possíveis) para a tristeza do Pensamento». Parece-me, pois, que, na prática objetiva do ato de pensar, existe um lado solar e um lado lunar. Isto porque o ato de pensar não conduz necessariamente à tristeza. No entanto, o estudo de Steiner é demasiado claro para o pormos de lado.
Steiner inicia o livro com uma citação de Shelling, em «Da essência da liberdade humana», quando escreve:
Tal é a tristeza inseparável de toda a vida
finita, uma tristeza, porém, que nunca se torna realidade e serve tão-só para
dar alegria eterna de a superar. Dela vem o véu de pesar que se estende sobre
toda a natureza, a melancolia profunda e indestrutível de toda a vida
Apenas na personalidade há vida; e toda a
personalidade assenta num fundamento sombrio, que, não obstante, tem também de
servir de fundamento ao conhecimento.
E Steiner regressa a Shelling para nos avisar:
(...) e à asserção de
que uma tristeza necessária, um véu de melancolia, se associa ao próprio processo
de pensamento à perceção cognitiva. Poderemos nós tentar esclarecer algumas
razões para tal? Teremos nós o direito de perguntar por que não deverá o
pensamento humano ser alegre?
Após esta introdução/aviso ao leitor, Steiner evolui
paulatinamente e clareza para os dez
pontos sobre a possível tristeza no pensamento. Fastidioso era se eu as fosse
enumerar todas, mas partilho convosco algumas afirmações de George Steiner:
·
A infinitude
do pensamento é também uma «infinitude
incompleta». Está sujeita a uma contradição interna para o qual não poderá
haver qualquer solução. E continua, afirmando que essa contradição interna (aporia),
esta inevitável ambiguidade, é inerente em todos os atos do pensamento, em
todas as conceptualizações e intuições. Experimentem, provoca Steiner, escutar
atentamente a torrente do pensamento e, no seu centro inviolável, irão ouvir
dúvida e frustração. Não será necessário «pensar» muito para ver que sim, que é
verdade. Não me atrevo aqui a dizer que eu sou um exemplo vivo..
·
A
concentração completa não existe. Ela produz exaustão temporária, ou
permanente, como acontece a certos jogadores de xadrez ou matemáticos do ramo
da lógica. Eu acrescentaria outros, mas como se entende que esta concentração
de que Steiner nos apresenta é provocada, torna-se evidente que o pensamento
corrente, ou mesmo o de quando dormimos, é uma salvaguarda para a exaustão.
·
A originalidade
no pensamento existe mesmo? Ou estamos somente no campo da retórica?
Proponho: vamos pensar a utopia? Há quantos
milénios o fazemos mudando apenas alguns pressupostos? Acreditem que só de
ouvir falar em utopia já me sinto exausto, tal o número de variantes possíveis
de construção.
E as palavras, o nosso pensamento, as ideias, as comparações
tentadoras, as metáforas e analogias fluem neste livro incomum.
Steiner será um mestre em desfazer mitos de que somos tão carentes.
Mas também, segundo ele, novos mitos levantar-se-ão, como quem repete de uma
forma interminável, «novos» pensamentos.
Conclusão?
Entretanto, não é a discussão teológica ou
filosófica que conduz o pensamento aos limites dos seus indispensáveis e sempre
repetidos impasses. É, creio eu, a música, esse meio tantalizante de intuição
revelada para lá das palavras, para lá do bem e do mal, em que o papel do
pensamento, tal como o conseguimos captar, permanece profundamente fugidio. Os pensamentos
demasiado profundos, não tanto pelas lágrimas como pelo próprio pensamento.
Pode muito bem que Sófocles tenha dito tudo
na ode coral sobre o homem em «Antígona». O domínio do pensamento, da
inquitante velocidade do pensamento exalta o homem acima de todos os seres
vivos. No entanto, ele torna-o um estranho em relação a si mesmo e à enormidade
do mundo.
Falta,
propositadamente aqui, a exposição de Steiner de como o «pensamento» pode
influenciar a «originalidade» e a chamada criatividade na arte, ou de como se os nossos
neurónios não estivessem ligados química e eletricamente. Teremos nós o estudo da técnica,
é certo, mas há gestos e «saltos» que o próprio criador desconhece.
António Luís
Catarino
Coimbra 9 de
novembro de 2019
«Schneller! Schneller!» ou uma flor amarela para Charlotte Delbo
Charlotte Delbo. Resistente das Juventudes Comunistas, foi das poucas mulheres não-judias presa em Auschwitz Foto: Club Editor |
Livro estranho este. Pode um livro sobre Auschwitz, ser mais um livro sobre Auschwitz? Daqueles que inundam as livrarias para oferta do Natal que se aproxima e serão best-sellers garantidos? «Auschwitz e depois» de Charlotte Delbo é um livro diferente sobre o horror do programa nazi. Mas não só. Vêm lá todas as descrições consistentes e inequívocas dos campos de concentração, entre eles Auschwitz, somando o de Birkenau, campo da morte de onde ela pensava não poder sair e de Ravensbrück, campo só para mulheres, onde a autora também esteve; aliás, o seu último, antes da sobrevivência para a liberdade. Charlotte conta-nos o que já todos pensamos saber. O «Schnell! Schnell!» repetido e gritado constantemente aos seus ouvidos, sentir e tentar ignorar os espancamentos das kapos judias, as horas intermináveis na neve, para a «chamada» dos e das SS, as trocas de rações miseráveis, o esgotamento físico e psicológico, por fim a morte, nalguns casos, salvadora. As descrições são-nos transmitidas com um profundo amor pelas companheiras, as que pereceram e as que se salvaram com ela. A sua escrita é de uma doçura paradoxal. Nada acomete a uma eventual e legítima raiva. Compreenderíamos. Vê uma flor amarela e isso vale como um raio de enorme felicidade. Na trilogia da sua obra «Nenhuma de nós há-de voltar» (Livro I), nos seus primeiros apontamentos, não aflora nenhuma fúria. Simplesmente não vê. Olha para o lado quando vê um monte de cadáveres nus com a tatuagem de um número que ela também tem no braço. Não olha para a fila de mulheres «inúteis», escolhidas pelos SS, que esperam a sua vez no laboratório, antes do block 25, o dos gaseamentos. Ajuda como pode as vivas, sente-se culpada pelas mortes das mais frágeis que ela. A sua irmã morre no campo, ao seu lado e ela pergunta-se o que dirás aos pais, sendo que Charlotte não a impediu de morrer. Não a protegeu como devia. A culpa advem-lhe, arrasadora, talvez pior do que as torturas praticadas nos campos.
O Livro II, «Um
conhecimento inútil» e o III «Medida
dos nossos dias» são espantosos e talvez raros, neste tipo de literatura,
na sua descrição desiludida. É o «depois» aposto no título da trilogia. Após
ser libertada pela Cruz Vermelha e aceite como refugiada pelos suecos foi
repatriada para Paris onde, outrora, tinha sido presa pela Gestapo, como
resistente. Após três anos, não se habitua à vida «cá fora». Acorda às 3 da
manhã para a chamada e não mais adormece. Repete-se o schnell,
schnell, papéis, papéis, contagens, burocracias infinitas para quem não tem
já forças. A família que a afasta por estar «desequilibrada». A luta pela
herança do pai e o ataque jurídico da madastra. Cansa-a como nunca. Cá fora é
tudo schnell, schnell...é internada,
casa-se, divorcia-se, tem uma filha, quer estudar, tem de fazer a estúpida
contabilidade do pequeno hotel herdado.
Consegue, todavia, estudar e ainda juntar-se com as antigas companheiras de Auschwitz...nos
funerais de alguma delas. Todas riem e contam histórias do campo.
Nascida em
1913, sai de uma insuportável França
rendida aos fuzilamentos dos colaboracionistas e desconfianças para com alguns
resistentes. Ajuda ainda um que consegue provar a sua inocência. Vai para a
Suíça. Consegue trabalho na ONU e, passados muitos anos, volta para Paris onde
foi assistente de Henri Lefevre. Morre em 1985. Nunca se habituou, creio, ao
quotidiano.
Deixo-vos um extrato de um dos seus últimos poemas:
(...)
«Regressar não é tudo
É regressar para nos voltarmos a pôr a viver
A viver todos os dias
A trabalhar e a ter dívidas
A poupar para pagar as dívidas
A vender sabão
Porque não sabemos fazer outra coisa
A voltar para o escritório
Porque não sabemos fazer outra coisa
Na vida de todos os dias a procurar onde
morar
Porque não se pode viver de outro modo
A estar a horas
Porque no trabalho é preciso estar a horas
De que vos queixáis?
A vida é a vida com que sonháveis lá?
(...)»
Creio que
todos nós entendemos a analogia de Charlotte Delbo neste poema. Mas só uma
leitura completa dará a verdadeira dimensão desta grande escritora, para muitos
desconhecida. Os seus livros foram escritos em 1961 mas só publicados em 1970-71, porque entendia que a sua escrita não refletia completamente o terror passado nos campos.
A edição é
da BCF Editores, apoiada pelo Centre National du Livre francês.
António Luís
Catarino
Coimbra, 10
de novembro de 2019
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