quarta-feira, julho 20, 2016

Intervenção de Victor Oliveira Mateus na apresentação de Palimpsesto, de Ricardo Gil Soeiro


                    “Palimpsesto” de Ricardo Gil Soeiro lido por Victor Oliveira Mateus
     Palimpsesto, o novo livro de Ricardo Gil Soeiro, apresenta-se como uma tetralogia composta por quatro textos: Da Vida das Marionetas (2012), Bartlebys Reunidos (2013), Comércio com Fantasmas (2014), Anjos Necessários (2015: estas datações correspondem à escrita dos livros, já que os dois últimos textos são inéditos, logo, aparecem agora pela primeira vez). Estamos, pois, perante uma sequência de obras, onde apesar de cada uma delas se apresentar como um texto autónomo, não deixam, contudo, ao nível de certos temas e imagens, de remeter umas para as outras. O ponto de partida deste projeto radica na tese de que não só todo o texto, enquanto objeto, se encrusta em outros que o antecederam, mas também o sujeito da leitura é ele próprio um ser formado por camadas textuais que a memória cultural nele foi depositando. Constatamos, assim, a interconexão de três territórios fundamentais, núcleos a partir dos quais todos os temas destes livros vão emanando: a relação dialógica memória/esquecimento, a temporalidade e o texto, entendido este numa asserção dual, ou seja, o texto enquanto conjunto de signos que ordenados segundo dado código esperam na página o olhar do leitor ou o texto do mundo, de acordo com a tradição que vai dos Pitagóricos a Einstein passando por Galileu,  Durkheim e tantos outros. O texto, seja qual for a forma pela qual se apresente, acaba consentindo a decifração do anteriormente rasurado (Cf. Teses sobre uma Poética Palimpséstica, I, p.   ) e é nessa dialética entre o oculto que, por lampejos, consente em se ir abrindo e o que se assume como novo a inscrever, que se instaura uma tríade que transpassa todo este livro de Ricardo Gil Soeiro: o amar a partir dos textos que nos enformam, a aprendizagem do desejo e o iniludível recomeço na eterna invenção do mundo (Idem). O texto, ou os textos, essa tessitura que fazemos – e da qual somos feitos  – desmembra, nesta perspetiva do poeta, a encumeada visão maioritária no Ocidente de uma criação a partir de uma palavra originária, aqui Toda a palavra é já um início tardio. Escrever é desmantelar a quimera da origem, desmascarar a fábula do inaugural. (Cf. Teses sobre uma Poética Palimpséstica, IV, p.    ). Estamos, por conseguinte, ante um solo de latências, de uma infindável arte polifónica, de ecos, ante um solo de onde foram varridos de vez os caracteres definitivos, as certezas positivas, os absolutos caracterizáveis a preceito. O eu-poético, nesta tetralogia, está só, só mas de olhar interrogante e lúcido, só numa melancolia e num desalento estruturais – atitudes por vezes, poucas, entrecortadas pela ironia ou pela frontal assunção da máscara –  que ele jamais cede, pois é deles, e da incerteza que eles veiculam, que não só a recusa das massas, mas sobretudo uma sabedoria outra serenamente se instauram (Cf.  Ricardo Gil Soeiro, A Sabedoria da Incerteza, 2015, pp. 18 – 19).
     São as epígrafes luzeiros que acicatam o desejo do leitor e, ao mesmo tempo, fogachos que nos entreabrem o sentido do texto. Assim, se no início da obra, Ricardo Gil Soeiro cita um excerto de Maria Gabriela Llansol (in O Livro das Comunidades. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1999, p. 57) para que nos surja clara a visão do Palimpsesto enquanto sobreposição de camadas textuais e a relação destas com o olhar de quem sobre elas se debruça, já no final deste livro o poeta não esquece os dois outros territórios fundamentais por mim referidos acima: a relação memória/esquecimento e a temporalidade. O texto aqui citado por Ricardo Gil Soeiro, integrou-o Baudelaire nas suas Visões de Oxford, que, por sua vez, formam um capítulo de Paraísos Artificiais. Baudelaire começa por defender que o cérebro humano não passa de um palimpsesto onde as camadas de ideias, de imagens, de sentimentos se depositam umas sobre as outras e que as mais recentes jamais conseguem sepultar completamente as que as antecederam. Conclui o poeta francês: “Sim, leitor, inúmeros são os poemas de alegria ou de desgosto que se gravaram sucessivamente no palimpsesto do vosso cérebro (…). Mas à hora da morte, ou na febre, ou nas indagações do ópio, todos esses poemas podem reganhar vida e força.” (Cf. Charles Baudelaire. Paraísos Artificiais. Lisboa: Editorial Estampa, 1971, pp. 154 – 156, Tradução de José Saramago).
    Em Da Vida das Marionetas, primeiro volume desta tetralogia com título retirado do filme homónimo de Ingmar Bergman, colocam-se enfaticamente as inquietações do eu-poético, que, todavia, não serão esquecidas nos livros seguintes. O poema 12., que dá título ao volume, desvela exatamente a questão da incomunicabilidade (Cf. também poemas 19 e 20) e do desalento dela derivada (Cf. poemas 7 e 23), dito de outra forma: há no eu-poético uma incapacidade estrutural de conjugar o conteúdo da ação com o instituído ou por um desejo seu ou por uma solicitação de outrem. A consciencialização destas frustrações será um dos fundamentos da melancolia (Cf. poemas 13, 15, 24), que não é sinónimo de infelicidade: “Por vezes é assim: esqueço-me / que permaneço fantoche cativo, / eternamente condenado a cruéis / caprichos de frágil demiurgo. (…) / Vejo a minha solidão e sou feliz.” (Cf. 1/28, a partir daqui indicarei sempre esta nomenclatura, pertencendo o primeiro número ao respetivo volume da tetralogia e o segundo ao poema nela aludido). O eu-poético neste livro, por conseguinte, não é mais do que uma marioneta cismando no seu destino, nas suas falhas e incapacidades: “Melhor seria render-me às evidências: / serei para sempre vago boneco de madeira, / oscilando no volátil trapézio do destino. / Com lábios emprestados / e pele improvisada, / vê como me elevo no ar, / representando cenas decerto / usurpadas da mente de um poeta. / E, no entanto, confesso que, / por vezes, queria ser humano: / (…) / Mas as coisas são como são e, / assim, aceito, de bom grado, / o papel que me destinou o universo:” ( Cf. 1/24); vê-se neste exemplo que, sendo a melancolia e o desalento sentimentos predominantes na marioneta enunciadora de desejos e ações, isso não obsta a que em dados momentos – poucos – ela não descambe numa certa aceitação da sua natureza de bonifrate pedindo meças ao destino que lhe coube em sorte. Também urge considerar a relação desta marioneta com o titereiro e com o palco onde todas as ações se desenrolam: “O palco agora está deserto. / Ainda frescos os despojos, as cicatrizes abertas pelo medo. / Parece mais verdadeiro assim: / de esqueleto nu, à vista de ninguém. / Ainda há poucos instantes insólitas / falas faziam vibrar a tua boca movediça” (Cf. 1/23). O hiato existente entre a marioneta e a plateia acabará cimentando a incompreensão desta e a prudência daquela: “Querias saber em que pensa uma/ marioneta quando está sozinha,/ afastada das luzes da ribalta./ Acautelo ciosamente os meus/ segredos bem guardados… “ (Cf. 1/8), contudo, ao mesmo tempo, esse hiato atirará a marioneta para uma atitude ambígua relativamente ao titereiro, quer desejando as suas mãos porque vivificantes e cénicas, quer temendo-as ou desprezando-as devido a todos os processos de nadificação a que tão habituadas estão e pelo cheiro a túmulo que sempre acabam trazendo: “Por vezes, reconheço, é difícil viver assim/ à mercê dos caprichos da plateia./ À deriva num teatro às escuras,/ esquecida a um canto,/ aguardo pacientemente pelo túmulo/ que em breve serão as tuas mãos./ Parecem troçar de mim:/ mas que sabem eles do meu mundo?” (Cf. 1/11).
     Todo este primeiro volume está eivado de epígrafes ou títulos de autores, que, em dado momento da sua obra, abordaram o mundo das marionetas:  Bergman, Klee, Kleist, Borges, Kateshi Kitano…  Mundo esse onde o eu-poético decide vestir a pele de um protagonista, que mais não é do que um mero invólucro de som, luz e gestos (Cf. 1/10) , aliás, não é por acaso que o subtítulo do livro é: Para uma Dramaturgia do Corpo Inanimado, no entanto, desiluda-se quem pensa que Ricardo Gil Soeiro decidiu encerrar a sua escrita poética num cultismo hermético e autossuficiente, estamos antes perante uma tessitura de metáforas e, até mesmo, de parábolas, geralmente com funções ilustrativas, mas, por vezes também, com uma função normativa implícita, procedimentos esses que subtilmente interrogam o mundo concreto dos homens nas suas vertentes existenciais e históricas, interrelacionais e, até mesmo, Éticas e Ontológicas: “Quem obedece a quem?/ Esta é a pergunta que deixamos/ a reverberar em surdina, / como um sonho lento/ sobre o qual nada diremos. “  (Cf. 1/18) e é esse mundo concreto, marcado pelo absurdo, pelo inautêntico e pelo desumano, que estabelece, logo no início do livro,  o que irá ser o itinerário do eu-poético: “Não./ Não me tentam sereias,/ deuses ou centauros./ E até já me fartei do falso brilho/ de vampiros e fantasmas./ O que eu queria mesmo era/ transformar-me em extravagante marioneta” (Cf. 1/1). Chegados ao fim deste primeiro texto percebemos que aquele querer foi concretizado e que a sua missão chegou a bom porto.
    Em Bartleby Reunidos, volume dois desta tetralogia, parte-se do texto Bartleby o Escrivão de Herman Melville que narra a história de um advogado que decide acrescentar um funcionário aos dois outros que já detém. Este advogado, que, desde a juventude, adquiriu a profunda convicção de que o modo de vida mais fácil é o melhor (Cf. Herman Melville, Bartleby o Escrivão, 2009, p. 18) vê-se, subitamente, envolvido numa série de incidentes com o seu funcionário recém admitido, este, de início, ainda produziu uma enorme quantidade de escrita (idem, p. 31), mas logo se entrega a uma estranha indiferença perante tudo o que o cerca e a todas as perguntas ou escolhas respondia invariavelmente: “preferia não o fazer”. A partir daqui as vidas do advogado e do seu escrivão multiplicam-se numa série infindável de acontecimentos que irão desembocar no encerramento de Bartleby na Penitenciária (Cf. idem, ibidem, pp. 76-83). A própria morte de Bartleby ocorre de modo silencioso, distante e à margem do turbilhão. Não deixa de ser interessante assinalar  aqui a afinidade desta morte com o modo como, num romance de Michel Tournier ,Os Meteoros ,os gémeos dormiam: unidos e em posição fetal, há em ambos os casos não só uma estratégia de recusa da conformidade, mas também um certo desejo fusional, uma vontade de apaziguamento através da negação e da morte. A presença analítica e crítica do Não, assim como a consciencialização da Morte como dadora de sentido à efemeridade da vida ou como insofismável presença adstrita à melancolia atravessam também esta tetralogia de Ricardo Gil Soeiro (Cf. 1/10, 1/25, 2/10, 2/14, 3/5…), e na acalmação do eu-poético, que nos outros dois autores  aparece expressa por uma simbólica uterina: a terra e o sono,  joga agora nesta tetralogia um papel semelhante, mas através das imagens protetoras: do casulo (Cf. 2/9, 2/11, 2/24), do ninho alugado (Cf. 3/19),  da placenta livre como esconderijo predileto (Cf. 3/24) e  do retiro de sombras (Cf. 4/6).
    A figura do Bartleby de Melville seria depois retomada – e retocada – por vários outros autores, dos quais destacamos Enrique Vila-Matas com a sua obra Bartleby & Companhia, onde um narrador decide inventariar escritores e/ou personagens padecentes da síndrome de Bartleby, ou seja, todos aqueles que por um motivo ou outro renunciaram à escrita como forma de a poderem afirmar. A obra de Vila-Matas consta então de um infindável conjunto de notas de rodapé onde as razões justificativas do Não desses escritores são explicitadas. Nesse escaparate da Literatura do Não podemos encontrar uma diversidade de casos desde Rimbaud (Cf. Enrique Vila-Matas, Bartleby & Companhia, 2001, p. 24), e Hart Crane (idem, p. 47) até Juan Ramón Jiménez (idem, ibidem, pp. 135- 137). Estes livros, quer o de Vila-Matas quer o de Ricardo Gil Soeiro, e já que estamos falando de palimpsestos, podem ser entendidos como um alerta e, até mesmo, como uma tomada de posição relativamente ao estatuto e futuro  da literatura. Todavia, perscrutando de modo a relacionar o Bartlebys Reunidos com os outros livros desta tetralogia, poder-se-ão encontrar neste apreensões e reflexões bem mais abrangentes tangenciando os domínios Ético, Antropológico e Ontológico, atente-se, por exemplo, à seguinte clarificação do humano : “E é então que chegas a concluir/ que nada há a fazer, pois signos/ precários é tudo quanto somos,/ murmúrio de aguardar somente” (Cf. 2/10)… A Resistência passiva levada a cabo pelo Prefiro não o fazer terá, então, uma aplicabilidade que extravasa a questão do destino da literatura, tornando-se extensiva a muitas outras áreas disciplinares. Eis, e para concluir este subtema, mais três versos sobre a natureza humana que abonam a favor do anteriormente dito: “E, na impaciência de nos sabermos/ desistentes, digo para comigo:/ afinal, somos todos Bartleby”.
    Em Comércio com Fantasmas, terceiro volume desta tetralogia, consolidam-se alguns aspetos formais, adquirindo mesmo vários uma especificidade e uma força não detetadas nos outros livros: o modo como este e aquele leitmotiv é trabalhado aproximam Palimpsesto (ao nível formal) de algumas das grandes tetralogias da cultura ocidental: as de Shakespeare, O Anel dos Nibelungos de Richard Wagner, O Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrell…; os momentos de intertextualidade são também recorrentes nesta obra, todavia, é neste terceiro volume que eles assumem, por vezes, um acinte inusitado, como, por exemplo, no modo como se distorce e se põe ao serviço próprio os dois primeiros versos do poema Quasi de Mário de Sá-Carneiro: “Um pouco mais de sombra e seria chama.” (Cf. 3/14), bem como uma das máximas de Pessoa irrompendo agora, mas de outro modo: “O leitor é um fingidor” (Cf. 3/27);  a filigranada estrutura poemática chega ao ponto de – de modo deliberado e no que parece ser uma advertência (ou provocação) ao leitor, para que não se esqueça de que estamos no território do palimpsesto - … chega ao ponto, dizia eu, de assumir um título de Barthes como título de um poema (Cf. 3/13, Fragmentos de um discurso amoroso), para logo no segundo verso desse mesmo poema esconder  um outro título, este agora de António Lobo Antunes ( A explicação dos pássaros ), mas a intertextualidade não se fica só pela alusão, pela conotação e pelo parodiar, ela entra Lógica Formal adentro: repare-se como os poemas 14 e 15 deste terceiro volume se iniciam por versos que ocultam no seu seio duas proposições universais que se contraditam entre si, são os ditos versos: “Uma carta chega sempre ao seu destino” (Cf. 3/14), “Uma carta perde-se sempre pelo caminho.” (Cf. 3/15), por fim, atente-se ao estado de espírito que Ricardo Gil Soeiro refere aquando da receção de uma carta e compare-se com aquela espécie de  êxtase de que Bachelard fala, quando, na sua A Psicanálise do Fogo, descreve o Complexo de Empédocles: “(…) o normal curso do tempo parece suspender-se: rendemo-nos a um auto-recolhimento solipsista, à agudização do eu-enquanto-abismo. O olhar torna-se parado, o mundo cessa. E depois há o cheiro… “ (Cf. 3/30).
         Este terceiro texto continua a bordejar a negatividade dos lugares (topoi) e temas visitados pelo poeta: veja-se a natureza humana e sua errância pelo aqui – “ Somos poemas clandestinos, embarcando em imaginárias travessias” (Cf. 3/ 27);  “ procuro esquecer-me que o tempo existe/ e que ele é solitária travessia a percorrer,/ sabes, é inútil o que nos separa da morte. “ (Cf. 3/19).  A partir daqui o livro abre-se em dois trilhos paralelos:  por um lado, uma miríade de poemas onde há toda uma nomenclatura intrinsecamente relacionada com a Epistolografia  trocada – ou a trocar – entre estes Espectros que vamos sendo  ( Cartas extraviadas, selos roubados, Devolvido ao remetente, Postal de viagem, etc., etc.); por outro lado, elocuções de cariz metapoético que vão surgindo concomitantemente com um cismar crónico, ora sobre o mundo exterior ora sobre o interior, quanto a este último ponto é paradigmático o poema Testamento vital  (Cf. 3/17): “ Por vezes chega de repente,/ revisitando-me em horas vazias./(…)/ Mágica e desolada./ Assim é a poesia.” Este poema, propositadamente assinalado aqui, recoloca, sobre outros fundamentos, a relação da inspiração – entendida agora como momento oportuno para, predisposição interior para – com o fazer poético, aliás, a figura da Musa surge várias vezes ao longo desta tetralogia, no entanto, ela não é já a divindade inspiradora dos Românticos, mas aquilo que tangencia as Ideias da Vocação, do Ditado e da Musa explanas por Agamben (Cf. Giogio Agamben, Ideia da Prosa, 1999. pp. 37 – 50).
    Finalmente, o quarto volume desta tetralogia: Anjos Necessários, Para uma Escrita do Desejo, que parte de uma epígrafe de Wallace Stevens  encerra duas ideias fundamentais: a) a voz que traz em si a marca (ou o estigma) da poesia é como um anjo necessário; b) o acolhimento dessa presença tem uma dimensão salvífica. Aqui é impossível não nos lembrarmos de Lévinas, quando ele nos diz que a Exterioridade e a Separação relativas à Totalidade do Mesmo são obviamente positivas, já que Abrem no sentido do Infinito, e que esse Mesmo só é tal ante o Rosto do Outro, pois é exatamente nesse Rosto do Outro que se encontra estampada a divindade. No entanto, Ricardo Gil Soeiro afasta-se de Lévinas, não só relativamente à questão da transcendência, mas sobretudo quanto ao estatuto de efémero, veja-se (e já que estamos falando de palimpsesto e de camadas textuais que se sobrepõem) o que seu texto diz, após ser colocado sobre um outro de Wallace Stevens:: “Assim é a perfeição do pensamento:/ aceitar as coisas como elas são./ Por esta altura, já me deves reconhecer:/ eu sou o anjo necessário e com a minha/ guitarra azul executo improváveis melodias/(…) um poema no coração do vento/ e juntos seremos capazes de/ ressuscitar a beleza do mundo./ Na latência do devir seríamos/ apenas quilo que somos:/ afinal meros figurantes, perenes protagonistas do efémero.” (Cf. 4/1). Os anjos do poeta não se agrupam em exércitos celestes, são antes esses seus companheiros do efémero e do acidental (Cf.4/5), que paulatinamente e sem grandes ilusões veem executando a única vingança de que são capazes e a que se sentem com direito: “  – a arte, esse segredo nunca revelado que,/ como um enterro prematuro, pode matar.”  ( Cf. 4/5); é, por conseguinte, na latência de todos os possíveis, nesse aberto que o devir sempre acena, nesse efémero – talvez antecipadamente condenado -  que marionetas, fantasmas e negações se entrecruzam, mas é também aí que Ricardo Gil Soeiro, ininterruptamente, faz e refaz a beleza terrível de que ele nos fala no poema 7 deste volume, daí, portanto e à guisa de conclusão, o verso final de A invenção do mundo: “Quem me acompanha em tal tumulto?”  (Cf. 5/16).