Nos catorze anos que já leva a Deriva e
após inúmeras apresentações públicas (talvez de mais), esta é, sem dúvida, a
que mais dificuldade tive em fazê-la. Liga-me uma amizade de dezenas de anos ao
Tó Martins e projectos em comum, ideias partilhadas, outras nem por isso, grandes
hiatos e ausências, pedidos de informações sobre a vida um do outro, a
existência de grandes amigos presentes aqui e uma que não posso deixar de
referir, o Francisco Pedroso Lima, infelizmente impedido de estar aqui
presente, hoje, por motivos particulares.
Cidades
Materiais impressionou-me. Nas suas várias releituras emergiam
situações, diálogos, descrições a que não me pude furtar, parecendo-as viver,
ou tê-las vivido de uma outra maneira e atacando-me sobremaneira nomes,
vivências e fisionomias, sendo isto um direito de leitor, e nomes com os quais
me identifiquei tais como William Morris pela natureza e pela ligação ao Homem,
Stevenson e Lafargue pela presença límpida do ócio, Thoreau pela contemplação
activa, Corto Maltese pela ambivalência de um espírito livre, Burroughs e a sua
procura incessante do humano e do amor.
Para mim, esta dificuldade reside no tema
incontornável que levou à edição deste livro. Cidades Materiais poderiam ter sido ao mesmo tempo imateriais, tais
como as personagens que as habitam, ou talvez não, e por conhecer o autor num
tempo já longínquo. Veremos. Resta-me, e não é pouco, acreditem, falar no autor
e na realidade que nos cercou durante anos. Só me resta isto, recusando
qualquer veleidade crítica ao livro. Se o farei aqui e ali é somente para
sublinhar uma experiência vivida em comum, com outros companheiros. Aqui vai um
conjunto de impressões que partilho convosco:
Primeira impressão –Antero. Em meados dos
anos 80, tínhamos todos 20 e tal anos. Miúdos da Faculdade de Letras que
dizíamos abominar, sob a fórmula de palavrosas parábolas coimbrãs: «faça-se
luz, incendeie-se a universidade!». Não desgostávamos assim tanto da faculdade,
mas a verdade é que nos foi ensinado muito mais nos cafés adjacentes à Praça da
República onde o prazer de falar, de conhecer e de debater era superior a tudo.
Com algumas substâncias e segmentos aditivos que o facto de já terem prescrito,
e apesar de uma louvável loucura que contrastava por vezes com imprevisíveis
depressões, não me fazem aqui desenvolver e muito menos pormenorizar, por
irrelevante. O agir concreto apareceu com o convite para fazer parte de um
colectivo editorial da Centelha, e mais tarde Fora do Texto, então e segundo
palavras de Soveral Martins, estando em plena crise de criatividade. Contactei o
Tó e durante alguns anos a coisa rolou editando alguns livros a que já se
referiu na sua descrição biobibliográfica.
Segunda impressão – o espírito da revolta.
In girum imus nocte et consumimur igni, o
último filme de Debord realizado em 1978 e editado finalmente em 1981, com
peripécias várias que, mais tarde, inclusive, levaram ao assassinato do editor
da Champ Libre, Gerard Levobici (e não foi o único), constrói a ideia do
consumo e da alienação como alfa e ómega do capitalismo em fase de mutação para
a pós-modernidade. Esta frase latina atribuída a Virgílio é a descrição real do
que nos levou à deriva nocturna e à necessidade imperiosa de lutar contra a
alienação do público que nos olhava de soslaio. Consumimos a noite e
pegávamos-lhe fogo mesmo com acendalhas já usadas por outros. Creio não me
enganar que entre blusões negros e echarpes negras ou canadianas verdes
militares, construímos à nossa maneira um fogo permanente que nos devorou
igualmente na ânsia da revolta e na dramatização do sem sentido de uma vida
quotidiana que negávamos. Recusávamos o tédio. Recusávamos a mercadoria,
recusávamos qualquer valor de troca. Preferíamos a poesia e o pensamento como
as únicas vertentes que não se podem domar. E o amor. Esse, sempre presente no
fogo quotidiano em que geríamos a noite em chamas. As chamas, essas,
devoraram-nos? É possível, mas nas regras do Potlacht primitivo, este com coincidências inquietantes com o
cristianismo também ele primitivo, quem perde ganha, quem ganha, perde. A noite
consumiu-nos, sim, mas com a voragem da revolta romântica.
Terceira impressão – «Numa sociedade
invertida, o verdadeiro é o momento do falso». Isto foi dito em 1967 e corresponde
a uma realidade já indesmentível e com contornos que o seu autor, Debord, provavelmente,
não imaginaria na enorme dimensão espectacular que nos rodeia hoje. Assim, se
nenhum movimento reivindicativo da arte revolucionária foi superado desde 1916
com Dada, esta tornou-se uma mera mercadoria, que vale o que vale consoante o
valor das trocas. Assim, o livro do Tó adquire a faceta da verdade, num mundo
realmente invertido. Porque utiliza as palavras certas nos lugares mais
recônditos e os que estão mesmo juntos a nós, no prazer da viagem e da aventura
e na própria visão do amor, a única realidade impossível de subverter. Talvez
por isso, quase de certeza por isso, na Centelha, ainda antes de haver a
internet e as redes sociais foi formada uma verdadeira rede (net) em forma de
papel com todos os movimentos alternativos europeus dignos desse nome, da
América e Canadá, passando por Seul e Tóquio onde então a luta antinuclear e
libertária começava a fervilhar. Era a Ekomedia a que demos corpo, denunciando,
partilhando experiências e informação de revolta internacionalistas e cujo
símbolo era um gato preto assanhado. Nessa ocasião, editámos Os Novos Espaços de Liberdade na Europa,
de Félix Guattari e de Toni Negri, preso na Itália e que hoje toma o seu rumo
de vedeta antiglobalização com o nome de Antonio Negri que juntamente com
Michael Hardt editou o best seller Império.
O Tó Martins, enveredou por Ramos Rosa, com As
Mãos de Água e as Mãos de Fogo, com os Pés
Luminosos de Jorge de Sousa Braga, de Gil de Carvalho, Constantin Kavafy e
Philip Larkin. O lado lunar e o lado solar da Centelha e da Fora do Texto.
Adivinhem agora quem foi quem.
Quarta impressão – A Deriva
Nos anos 80, vivia-se por toda a Europa a
ressaca dos anos de chumbo criados por Andreas Baader e Ulrike Meinhof que
proclamava em livro «vocês falam do tempo, nós não!» e pelas Brigadas Vermelhas
de Renato Curccio na Itália, estas últimas teleguiadas, como se soube, pela
polícia secreta. Tudo isto gerou uma impossibilidade poética, uma forma de ver
a política e de destinar uma vida quotidiana não marcada pelo tédio e pelo
aborrecimento, ou, se quiserem, pelas cadeias infernais do trabalho. Mas como
promover isto mesmo numa sociedade alienada pelo medo, pela vingança dos anos
pós-prec e pelo espartilho terrorista no Portugal mesquinho dos anos 80 e da
recuperação yuppie? Foi a altura também dos anos criadores e libertadores do
rock com o aparecimento de Johnny Rotten, dos Clash, de um Lou Reed já sem os
Velvet Underground, do Bowie tornado pop, de Ian Curtis dos Joy Division e
depois com os New Order, de Iggy Pop, de trautearmos Jim Morrison pelas ruas
desertas de Coimbra e aclamando o Jazz, recuperando para nós o be-bop e o free
como forma de dizermos: «Falem do tempo, falem do tempo, nada temos a ver com
vocês!» Aderimos à arte contemporânea e às possibilidades do vídeo, do teatro e
da performance sendo que estas foram, exceptuando alguns, poucos, casos,
rapidamente recuperados. Identificávamo-nos pela música e pela deriva. A deriva
consubstanciada todos os dias numa cidade que cada vez mais se tornava um
labirinto de cimento corbusiano. A deriva que aqui se fala é a de Thomas de
Quincey que, nas suas «Confissões de um Opiómano Inglês», tradução forçada,
diga-se, afirmava haver uma rede subterrânea, marginal, na cidade de Londres,
não cartografada pela polícia e pelas instituições políticas. Era terreno
livre. Os dadaístas, os letristas e os surrealistas e muito mais tarde os
situacionistas praticaram-na na forma de desconstrução da palavra e da
deambulação livre em corredores libertários. Na construção de situações
irreversíveis. Mas sem se superarem. Precisamente: o verdadeiro aqui, não
superou o falso. Assim, toda a deriva que realizámos, muitas vezes sem sentido,
nas ruas e becos nocturnos, só teve consequências na construção de mercadorias
irrevogáveis: os livros e as ideias que eles trazem. O teor do que são feitos.
A forma. A cadência e a recusa da «inovação». Até porque, sabemo-lo, quando o
patrão exige inovação, o escravo honesto é o primeiro a proclamá-la. Por isso
também, Tó, o teu livro tem um valor imenso. Por isso a nossa deriva teve
consequências até no envelhecimento de cada um. Mas, pelo menos, fomos
coerentes.
Quinta impressão – a sociedade do cansaço
ou o tardomodernismo
No ano passado, editámos, no Porto, um
livro apresentado por Rosa Maria Martelo e a autora de Calma é apenas um pouco tarde - A Resistência na Poesia portuguesa
contemporânea, de Maria Leonor C. Figueiredo. Falavam no leitmotiv da poesia e da literatura
tardomoderna, isto é, pós-pós-modernista e, recusando todo o aspecto político e
partidário da resistência «poética e literária» que pouco, ou mesmo nada, terá
a ver com isso; baseavam-se num autor até aí desconhecido para mim. Era
Byung-Chul Han que publicou A Sociedade
do cansaço. Era, segundo essas autoras um dos principais campos de
intervenção da poesia e literatura actuais. Vale a pena citá-lo um pouco porque
o ritmo ritualizado do livro do Tó (e também o meu, o nosso, cansaço, ou o
actual e colectivo burnout) vai nesse
preciso sentido. Diz Han: «a sociedade disciplinar, tal como Foucault a
concebe, formada por hospitais, manicómios, prisões, quartéis e fábricas, [e
como contra elas nos batemos nos anos 80, digo eu!] já não corresponde à
sociedade dos nossos dias. Há muito tempo que ela foi substituída por uma
sociedade completamente distinta de ginásios, torres de escritórios, bancos,
aeroportos, centros comerciais e laboratórios genéticos. A sociedade do século
XXI já não é uma sociedade disciplinar, mas, sim, uma sociedade de produção.
(…) A sociedade disciplinar é uma sociedade de negatividade. Ela é determinada
pela negatividade da proibição. O verbo negativo que a domina é o “não poder”.
Ou seja, até a palavra de ordem “é proibido proibir” foi absorvida pelo sistema
(…) A vida cultural da humanidade, na qual se inclui também a actividade
filosófica, só é possível e só se desenvolve quando existe uma atenção profunda
e contemplativa. A atenção profunda tem vindo a ser cada vez mais suplantada
por um tipo de atenção completamente diferente – a hiperatenção, dispersa e
distraída caracterizada pela mudança brusca do foco da questão, pela alternância
constante das tarefas, fontes de informação e processos. A tolerância ao tédio
é bastante limitada e acaba por não deixar muito espaço livre àquele tédio
profundo propiciador do processo criativo. É precisamente este tédio profundo [um
outro tipo de tédio que abominávamos nos anos 70 e 80 na esteira política dos
anos sessenta, mas que hoje tem este sentido que lhe dá Han] que Walter
Benjamin descreve “a ave do sonho que choca o ovo da experiência”». Por isso o animal laborans da sociedade
tardomoderna é hiperactivo e hiperneurótico, nervoso, odeia o silêncio e vem em
sentido completamente contrário às personagens que dão vida ao livro do Tó
Martins que segundo a minha opinião reivindicam a vida humana total. Talvez
Nietzche, um filósofo a que demos sempre muita atenção nas nossas derivas
filosóficas dos anos 80, tenha resumido tudo isto neste aforismo: «Ao homem
activo falta, regra geral, a actividade superior, o que faz dele, sob este
ponto de vista, um homem preguiçoso. Tal como a pedra, o homem activo rebola ao
sabor da estupidez da mecânica». Para que não haja dúvidas, escreveu-o ele no Humano, Demasiado Humano.
Esta foi sem dúvida a grande aventura do
pensamento que um grupo de jovens dos anos 80 e inícios dos anos 90 e dos quais
quase nenhum, hoje, se encontra radicado em Coimbra, realizou. Tentámos o
impossível. Lutar contra a opacidade que então já se elevava na sociedade
circundante e que varreu o mundo, tal como é definida, hoje por Steiner, pelo
facto de hoje sermos incapazes de saber, ou querer saber, o que o outro ser
humano está a pensar. Não prestamos atenção suficiente ao outro. Ora, o Tó
Martins, teve a coragem de fazer-se ouvir, pensando Outro, onde as tonalidades
da mentira são inúmeras, na tal sociedade invertida, onde o verdadeiro é
somente o momento do falso.
Sexta e última impressão – Volliamo Tutti, foi o grito de guerra dos
operários e estudantes de Bolonha que queriam simplesmente tudo, tal como os comunnards franceses de 1871, ou os
estudantes de 68 e os mais radicais de 69 em Coimbra, cidade que, vejam, foi referida,
num posfácio, por Vaneigem no seu livro icónico A Arte de Viver da Geração Nova. Nunca foi compreendido em toda a
sua extensão esta reivindicação tão simples. Foi-o por nós. Disse ele: «Aqueles
que falam de revolução e de luta de classes sem se referirem explicitamente à
vida quotidiana, sem compreenderem o que há de subversivo no amor e de positivo
na recusa de coacções, esses têm na boca um cadáver»; mesmo dentro da
experiência editorial que partilhámos os dois, juntamente com outros
companheiros, isto nunca foi compreendido nos anos 80 e nos que se seguiram.
Tratava-se de ligar um movimento alternativo e libertário à arte e à cultura ou
que existe ainda dela. Entre o niilismo terrorista dos anos de chumbo por que
passámos nos anos 80, não houve espaço para demonstrar a equivalência e a
necessidade das duas reivindicações. Não há verdadeira política sem arte, não
há arte sem polis ou na poesis. Fomos,
então, à nossa vida. Nenhum de nós ficou cá. Acompanhados pelos anjos da
impotência de Klee, o seu Angelus Novus,
ou dos de Walter Benjamim, ou os anjos do desespero de Heiner Muller, talvez
ainda com os de Wim Wenders, que hesitam entre a queda e o voo. Porque já não
acreditam nas suas próprias asas ou vivem aterrorizados, perante o mal de
Arendt, construído por funcionários subalternos ou pelos burocratas de Kafka. A
guerra, essa, instalou-se no nosso campo. O livro do Tó é o verdadeiro que se
arremete contra o falso. Tem asas. Oxalá voe. «Restam, portanto, os
irrecuperáveis, aqueles que recusam os personagens, aqueles que elaboram a
teoria e a prática dessa recusa». É nessa inadaptação à sociedade do
espectáculo, ou tardomoderna, que virá a poesia do vivido, uma reinvenção da
vida. O que foi realizado em Cidades
Materiais ou nos que o Tó ajudou a editar pela sua vida fora e em
diferentes situações. Aqui, e com ele, cantam os «anjos da pureza» de Mallarmé.
É assim que eu o vejo. Ao teu livro, Tó. Ele voa. E como dizes, em completa
consonância, julgo eu, do que aqui disse e que partilharei convosco:
«Quero acreditar que no choque dos
contrários, nessa violência que habita a ambivalência, é possível um movimento
de descanso do olhar, de tranquilo desejo, de pasmo e de alucinação sublime, de
descoberta, de risco. Talvez assim a vida sobreviva, talvez…»
António Luís Catarino, Porto/Coimbra,
Julho de 2016