quarta-feira, julho 27, 2011

Nenhum Lugar, de Ricardo Romero [trad. Patrícia Louro]



Começa assim Nenhum Lugar, de Ricardo Romero [trad. Patrícia Louro]
Já disponível nas livrarias e aqui.

"Deitado no assento traseiro do táxi, sentido o suave tremor do carro nas costas, Mauricio olha o teto e escuta. Dormiu, dorme, está quase a dormir. Na rádio ouve-se, débil, com dificuldade, uma canção melancólica e ligeira.
“Roxanne, you don’t have to put on the red light
those days are over
you don’t have to sell your body to the night
Roxanne ...”
Onde estava? Ou devia perguntar-se, onde ia? A música dava-lhe voltas à cabeça, aprisionando-o num suave refúgio de sonolência e dilação. Doíam-lhe as costas e as pernas, mas não chegava a pensar nisso. No teto dançavam sombras, figuras evanescentes e sem sentido, de uma realidade ameaçadora e vazia. Pela janela, pelo contrário, via-se um troço de céu estrelado, simultaneamente escuro e resplandecente. Respirou fundo. Fechou os olhos, sentia-se confuso, e desejou não pensar nessas coisas. Em que coisas? Em que é que estava a pensar? Voltou a abrir os olhos, pestanejou duas ou três vezes. Demorou algum tempo a compreender que estava acordado e que nesse carro havia demasiadas coisas que ele não sabia identificar. Uma delas era a canção, mas certamente não era a mais importante. Como sabia que estava num táxi? E porque é que não devia sabê-lo? Além disso, porque lhe parecia tão urgente acordar de todo?

Na penumbra do táxi e da noite, Mauricio viu por fim a nuca do taxista, examinou o desenho negro e largo do seu dorso, perguntou-se porque dizia dorso e não costas, seguiu o recorte preciso e revolto da sua cabeça, e ao endireitar-se no banco avistou o balançar impercetível das suas mãos sobre o volante. Estava num táxi e sabia-o, isso já parecia ser alguma coisa. Olhou à sua volta através das janelas e viu a noite, e na noite, o deserto esbranquiçado na distância. Procurou a lua, e não a encontrando sentiu-se inibido. O carro avançava em linha reta e o taxista não parecia ter-se dado conta que o passageiro tinha acordado. Mauricio olhou a estrada à sua frente, o asfalto iluminado pelas luzes do carro, talvez também um pouco mais além, sobre o cinzento claro e apagado que se estendia, interminável, debaixo do fulgor pálido do céu noturno. As riscas brancas seguiam-se uma após outra debaixo do feixe de luz e desapareciam debaixo do táxi. Mauricio teria preferido não as ter visto, mas já parecia ser demasiado tarde. Disse para si que era possível não lhes prestar atenção, olhando então para a estrada sem a ver, apenas por hábito, escutando a rádio que cada vez se ouvia pior. O desconforto que lhe provocavam essas riscas não se desprendia delas, estava ali, sem origem, e não valia a pena tentar persegui-la. Para as deixar de lado pousou o olhar nos postes torcidos de arame dos dois lados da estrada, mas também eles tinham a sua própria sucessão de melancolias sem nome, que se desfaziam uma e outra vez em sombras fugazes e caladas.

Sem saber muito bem o que fazer, aproximou-se da janela e perscrutou a paisagem para lá da estrada. A noite era clara e ele podia ver uma grande extensão de arbustos baixos e pastagens ralas sacudidas pelo vento. Era uma paisagem plana, onde só se destacavam umas elevações escuras que pouco se diferenciavam do céu na linha do horizonte. Perto ou longe só crescia o vento, o resto parecia limitado a uma resignação vazia e imensa. Mauricio, ao observar tudo isto, sentiu a vã necessidade de dizer-se o seu nome em voz baixa, de o recordar.

“rrr...roxanne...rrrrrr...”

A estática da rádio, pouco a pouco, ia deixando atrás a música, que parecia perder-se na obscuridade da estrada que iam percorrendo. Com o olhar perdido na imensidão plana da paisagem Mauricio perguntou-se pela primeira, ou talvez pela segunda vez, para onde estavam a ir. Olhando através da janela, sentindo agora o cansaço das pernas de tanto estar sentado, acabou por perceber a sua confusão. Deviam levar bastante tempo a viajar. Isso era bom ou mau? Não sabia, e a única coisa que parecia preocupá-lo nesse momento era que a música não desaparecesse, que não o deixasse sozinho com o taxista e com a estática. Porque era isso tão importante para ele? E que havia de mau em que fosse tão importante?

Acomodou-se no banco para confrontar o taxista, mas ao fazê-lo tropeçou com uma mochila que estava a seus pés. Era uma mochila preta com o fecho estragado, e antes de a abrir Mauricio já sabia o que continha. Dois pares de meias, dois pares de boxers, duas t-shirts, uma camisa, um pulôver cinzento com decote redondo, uma escova de dentes recém-comprada, papel higiénico, um isqueiro vermelho, uma edição maltratada de Macbeth e uma lanterna. Abriu-a, revistou-a. Não se tinha enganado, e a sua exatidão incomodou-o. Para que queria uma lanterna? Guardou o isqueiro num bolso das calças porque esse é o lugar que pertence aos isqueiros. Tirou o livro, segurou-o entre as mãos, amarelado, certamente roubado, unido apenas por pedaços de fita-cola preta. Na obscuridade do táxi não era possível ler, mas de todas as formas ele sabia das mulheres feias e disformes que falavam de um bosque em movimento que era portador da morte. A morte, isso não era algo em que ele pensasse muitas vezes. Pela janela voltou a contemplar a noite, o deserto, e aceitou vagamente que o que se movia era ele, entre extensões de vento e areia. Devolveu o livro à mochila, dizendo-se que tudo era possível e não pensou mais nisso."