domingo, março 13, 2011

O Teatro e a Palavra. TEatroensaio 26 de Fevereiro de 2011

Na sequência do estudo iniciado perante o tema O Teatro e a Palavra foquei-me na palavra enquanto expressão máxima da literatura. Não é de modo nenhum a expressão mínima desse mesmo género enquadrando-a, a expressão, no campo da letra e do silêncio fragmentado. Do espaço em branco da página ou do silêncio. É uma forma igualmente legítima de se compreender a sua relação com o teatro.


Assim, somei vários fragmentos em forma de dúvidas que passam pela relação, por vezes ambígua, do Teatro e da Literatura.

Comecemos pela literatura, pela poesia, pela palavra escrita e com a sua mais que possível morte a partir da cacofonia dadaísta, da expressão livre do surrealismo, da arte pop, do letrismo dos anos cinquenta (actualmente Serralves conta com uma exposição de Gil Wolman) ou do primitivismo dos anos sessenta. Todas estas correntes aceleraram a impossibilidade de um critério artístico para a literatura como arte. Digamos que morreu de cansaço ou de falta de superação da sua própria ideia de arte.

Resta-nos, pois, a experiência com a palavra e com o corpo, terreno fértil e aberto para o teatro e a literatura. E aqui surgem-nos dúvidas, por vezes fragmentárias, que teremos todo o gosto em partilhar convosco:

1. Toda a utopia ditatorial ou controlo ideológico passa, hoje, não pela proibição da palavra e do livro e da leitura, mas pela estimulação da leitura até à paranóia, que serviria de preâmbulo para o seu desaparecimento material. Compreendem-se, assim, as campanhas orquestradas para o fomento da leitura dos nossos jovens. A sociedade de mercado fará o resto. Somos todos possíveis compradores de livros, mas razoavelmente poucos o que estão interessados em lê-los.

2. A produção de infa-livros ou sub-livros é consequência da cópia fragmentária do livro e de partes do livro na era da internet. Introduz-se a cópia dos livros de um modo fragmentário retirando-lhe qualquer sentido ou dando o sentido totalitário às palavras que se querem copiar. A palavra ressentir-se-á assim do sentido que se lhe quer dar.

3. Mac Luhan definiu a Era Xerox como a possibilidade enganosa de todos podermos ser Gutenberg. Hoje a produção da palavra escrita estará confiada não ao artesão que a fabrica diligentemente, mas às massas que a desventram, jogando o papel de estranhos autores e editores de compostos de letras. Vê-se aqui a consequência da grande eficácia democratizadora e populista da produção da palavra escrita.

4. O embaratecimento e a acessibilidade absoluta a um meio, determina no próprio nível dos conteúdos o fenómeno volumoso de uma fraude, ou seja, a filosofia do engano intelectual instaurada quer nas salas académicas, quer nas populares. Perante isso, o copyright, sofreu um desprezo absoluto a que nenhum controlo pode estar submetido.

5. A poesia sofre hoje um processo de saturação, a qual está em grande parte submetida à aniquilação transcendental e totalmente fracassada no que seria a sua determinação social, segundo Walter Benjamim, quando diz que ‘o poeta actual faz do mercado e da mercadoria o seu único objecto’. Ou seja, configura o mundo da palavra sob o imperativo novo de uma pura razão industrial, mesmo que não esteja inteiramente consciente disso.

6. Hoje, atravessa na poesia e na produção da palavra escrita, aquilo que Greil Marcus, em Marcas de Batom, diz sobre o sujeito moderno: ‘o rumo de uma negação e destruição que, de um modo ininterruptamente acelerado, se está a apoderar de todas as formas de criação artística’ considerando-o este um processo irreversível de violência simbólica e que vem actuando sob as formas de uma possível vanguarda.

7. Dentro do mercado da poesia, um facto material evidencia o desinteresse activo pela obra de hoje, chegando este a mostrar-se de modo obsceno na quantificação das tiragens que os nossos poetas conhecem, incluindo os mais célebres. (…) Segundo G. Zaid, afirma que as estatísticas depressoras que o livre comércio procura dizem-nos que, apesar de a poesia ser já só para poetas, nem os poetas lêem os poetas. Neste terreno, o número dos que a lêem já não pode aumentar mais, mas sim os que querem ser lidos.

8. Como diriam os situacionistas, no fim dos anos 60, ‘os dias dos poetas acabaram’ concedendo actualidade a Hegel quando afirmava que ter-se-ia liquidado a produção simbólica no seu sentido mais forte. A arte verbal, começaria assim a ser ‘coisa do passado entre nós’. No que respeita à construção teórica e filosófica do sentido da palavra, há que dizer que dela ainda surge como um último baluarte para evitar a sua erosão, tornando possível a existência da palavra como um idioma poético, assumindo, em forma de drama (teatral, portanto) o conflito que ela abre: poesia pois, mas apenas na condição de servir para revelar o fracasso de toda a poesia. Se assim é, o teatro abre-se como verdadeiro espaço de assunção de uma palavra poética livre e para ser ‘ouvida’. Como lemos em Fin de Parti de Beckett, já não há muito a temer, mas também nada a esperar. Não há lugar para o temor, mas muito menos para a esperança.

9. Quem hoje morre como poeta pode estar certo de experimentar a ressurreição próxima como romancista, ou como uma espécie de qualquer comunicador de ondas hertezianas, em que se solicitam usos mais discretos e rebaixados do instrumento linguístico. Segundo Fernando de la Flor, o poeta rejeita o seu velho ofício, fechando a loja das musas e aderindo a novas formas mediológicas de modo a não perecerem, demonstrando que hoje há maus tempos para a mitologia da palavra.

10. É possível que hoje se esteja a criar uma cultura inteiramente independente da palavra, facto que poderá ainda assombrar algumas consciências. A palavra estaria submetida a uma pressão social que a re-situa continuamente, chegando mesmo a prescindir dela, a desprezá-la ou degradá-la, substituindo-a, nas suas funções por outros signos mais rápidos ao ouvido, à retina. Assim é possível que Mac Luhan tivesse razão ao demonstrar que as tecnologias mediadoras são o princípio de tudo. O declínio da poesia está portanto dependente à sua comunicabilidade. Como afirmou Karl Marx em, A Ideologia Alemã, a grande poesia épica foi a primeira vítima da imprensa e da máquina de escrever.

11. A palavra poética sujeita-se assim, estritamente, ao processo de coisificação, de objectualização e até de mercantilização de todo o espaço humano.

12. A poesia já não é expressão da radical alteridade do falante, nem acto de uma qualquer natureza rebelde. Pelo contrário, domesticou-se. O poeta entra no mercado comunicacional valendo-se de versos que não lhe pertencem na verdade, integrando-se num gigantesco processo que visa a hegemonização dos homens e das mercadorias. A literatura não foge a este processo.

13. Segundo Fernando de la Flor, a necessidade de silêncio é o reverso da superprodução inflacionista, a velocidade de execução crescente e cada dia menos exigente, a circulação acelerada pelos canais de informação provocou, nas pessoas, uma grande necessidade de silêncio e recolhimento, produto da saturação com que se manifestam as escritas poéticas do século. Produto também da fartura dos signos modernos que já fazia gritar os dadaístas: «devolvam-me o meu vazio!»

14. Os computadores pessoais são criadores de um embuste que todos constatam enganadoramente: ‘desde a sua aparição, escreve-se mais». Segundo Blanchot, por vezes, o volume ainda não está escrito e o escritor já é apresentado como maduro. A edição de poesia, nos nossos dias, mais do que noutros registos, é completamente fantasmal: publica-se, pois, antes de escrever, o público forma e transmite o que não ouve, o crítico julga e define o que não lê e, por último, o leitor tem de ler o que ainda não está escrito.

15. A música é, nos nossos dias, o código que actua no estrato mais profundo e tornou-se emblema dos modos de percepção estética do indivíduo moderno. Do mesmo modo que a palavra foi, em tempos, testemunho de um culto sagrado. A recente vitória da imagem e que alguns teóricos antecipam já o fim do seu reinado ao mesmo tempo que antevêem um certo regresso à palavra, pode restabelecer um certo equilíbrio destinado ao teatro como expressão de uma totalidade. Fragmentária ou não, a realidade do teatro pode ter uma nova dimensão. Se Lledó tem razão o teatro seria então a convocação dos invisíveis espaços interiores, através da poesia, da leitura, da escrita e do sonho onde, diríamos nós a imagem e a música teriam de expandir-se.

16. Deleuze reafirma alguma verdade na sua afirmação: «hoje, estamos inundados de palavras inúteis, de quantidades ingentes de palavras e imagens. A estupidez nunca é muda e cega. O problema não consiste em conseguir que as pessoas se expressem, mas sim em colocar à sua disposição vácuos de solidão e silêncio a partir dos quais se pudessem vir a ter algo a dizer. As forças repressivas não impedem ninguém de se expressar, pelo contrário, forçam-nos a expressarmo-nos.»

17. Finalmente, o livro, os livros, provam que algo foi escrito, e que também algo está em vias de ser lido. No fundo, trata-se não de um objecto mas sim de um domínio de intenções: de um campo, ou melhor, teatro onde se assiste a uma complexa encenação, onde se representa esse mesmo conjunto inabarcável de relações de leitura e escrita. Possibilidades infinitas para a representação teatral como realidade mediada da palavra.