Ainda que seja difícil aceitá-lo: dizer o que hoje sucede é dizer aquilo que nos sucede. As antigas análises de conjuntura já não nos falam porque nos afundámos na realidade. Ao invés, uma descrição da neve é-nos bem mais útil para sabermos onde estamos. A neve não é branca, mas antes de uma sujidade pegajosa. Os pés que nela se arrastam, por exemplo, não conseguem livrar-se dela. A neve está sempre meia submersa. Desde quando é verdade que a verdade do mundo se nos impõe como a nossa única verdade? A resposta é simples. Desde que a realidade se unificou com o capitalismo. Antes não era assim. Dantes, quando as análises de conjuntura contavam — ou pelo menos quando acreditávamos que sim — a realidade podia transformar-se. Agora também: «Outro mundo é possível». É isso o que as Organizações Não-Governamentais (ONG) afirmam. Foi isso que meio milhão de pessoas afi rmou no dia 16 de Março de 2002, saindo à rua em manifestação contra a Cimeira da União Europeia (UE) reunida em Barcelona. A manifestação foi um êxito. Graças aos numerosos serviços de ordem, perfeitamente coordenados com a polícia através dos telemóveis, correu tudo muito bem. Todos concordaram com isso. Desde o Senhor Ministro do Interior até aos anizadores, passando pelos diversos tipos de polícias.
Com efeito, a manifestação foi um êxito. Mas a manifestação pareceu-se com um funeral. Todos juntos, a avançar, sem conseguirem que a neve derretesse, sequer, um pouco mais. Cada qual sozinho — com a sua história pessoal, os seus desejos, as suas pequenas esperanças — juntamente com todos os outros. Esta manifestação, para muitos, histórica, é o fascismo pós-moderno. Vou à manifestação porque quero ir. Gritarei: «Outro mundo é possível». Voltarei para casa e continuarei a minha vida de sempre. É evidente que ninguém me obriga a participar. Só faltava isso. Eu sou livre. Eis o fascismo pós-moderno. E, ainda assim, os partidos políticos e os sindicatos de classe foram os últimos a desfilar. E, cansados de esperar, já que não estão acostumados a esperar… decidiram ir para casa. O fascismo pós-moderno é uma mobilização total da vida1 que (re)produz a realidade que se nos impõe como óbvia. Não tem nada a ver com a «auto-implicação no trabalho», «com o pôr a trabalhar» dos afectos… Essa ainda é uma análise economicista. Aquilo que agora se passa é que o capital, enquanto selbstzweckmaschine (máquina que tem a sua finalidade em si mesma) cortou a circularidade da vida. É apenas por vivermos, mais exactamente por levarmos a vida que é a nossa, que (re)produzimos esta realidade que se nos apresenta como pura obviedade. Nos Estados Unidos tornou-se moda, especialmente depois de 11 de Setembro, implantar sob a pele um chip que diz quem se é. Desta forma, em qualquer circunstância, pode-se sempre ser perfeitamente identifi cado. É divertido. É como um piercing, mas mais moderno. É o fascismo pós-moderno. Não é necessário insistir muito para justifi car o porquê desta designação.Estamos para além do panóptico e das suas múltiplas instituições disciplinares. Tampouco se trata somente de uma sociedade de controlo. O fascismo pós-moderno é a conjunção do (auto)controlo com a produção de diferença. Esta conjunção pode funcionar de modos diferentes, consoante se oriente para «projecto autónomo» ou bem como «imposição heterónoma». É daqui que decorre que a mobilização total da vida possua duas faces, ainda que complementares: a auto-mobilização (o Amor com maiúscula, a busca de si mesmo…) e a mobilização forçada (Estado penal, prisão…). Ficarmo-nos pela aproximação acima é totalmente insuficiente. O fascismo pós-moderno não é unicamente a descrição da modalidade actual de exercício do poder. No fascismo pós-moderno, para além disso, o capitalismo identifi ca-se com a realidade. Esta identificação implica o seu próprio rebentamento. Hoje, a realidade é única, mas diz-se de muitas maneiras. Estes modos de se dizer são as diversas formas históricas (neo-esclavagismo, fordismo, pós-fordismo), todas elas presentes na sua simultaneidade.Na medida, em que o fascismo pós-moderno as contém a todas constitui a suaprópria culminação. Vejamos mais de perto o que quer dizer o termo culminação. Usualmente, conhece-se por pós-fordismo a etapa actual em que o capitalismo se dispersa e fl exibiliza. Para uma melhor descrição, é conveniente fazer referência à política da relação que o estrutura. A política da relação vigente neste período pode centrar-se no princípio da identidade. Quando o princípio da identidade funciona para dentro, gera uma cultura da empresa. Ao contrário, quando funciona para fora, gera uma cultura da emergência. Ainda que muito diversifi cada, a cultura da empresa tem no toyotismo a sua expressão mais acabada. O toyotismo, como é sabido, organiza a produção a partir de equipas de trabalho e funciona pela incorporação da linguagem da competição desportiva (equipas, passagens do testemunho…). O que nos interessa sublinhar é que esta organização aspira à criação de um nós, no local de trabalho. Um nós ou neo-corporativismo de pequena escala tal que, ainda assim, precisa de uma cultura da emergência e da excepcionalidade penal para controlar o de fora, o Outro. A cultura da emergência recorre à prisão como seu dispositivo fundamental. Existe uma legislação amplíssima, com todos os seus aparelhos que complementam e estendem esse controlo normalizador. Com razão se discute se o pós-fordismo é uma nova estabilização do fordismo, ou uma crise mais avançada. Utilizando a terminologia introduzida, poderíamos afirmar que essa ambiguidade deriva da não existência de um isomorfismo entre a cultura da empresa e a cultura da emergência. Por isso, o pós-fordismo tem obrigatoriamente que tender para a sociedade em rede. Na sociedade em rede o princípio de identidade funciona no interior do princípio da razão suficiente, o que permite uma reformulação das duas culturas que facilita a sua máxima convergência. A sociedade rede conectará entre si os segmentos mais dinâmicos da sociedade, ao mesmo tempo que os desconectará e marginalizará. A sociedade-rede oferece um modo novo de resolver o afundamento da tríade democracia — Estado — capitalismo. Este novo modo que implica um verdadeiro salto por comparação com a mera convergência entre cultura da empresa e cultura da emergência, plasmar-se-á naquilo que anteriormente designámos por mobilização total (autónoma e heterónoma) da vida pelo óbvio. Pois bem, porque essa é a verdade da sociedade-rede, a esta etapa para que a sociedade tende chamámos fascismo pós-moderno. Neste sentido, o fascismo pós-moderno é, ao mesmo tempo, uma totalidade e a sua culminação.
A MOBILIZAÇÃO GLOBAL seguido deO ESTADO-GUERRA , Santiago López-Petit