PAINTER WORKING (Lucian Freud)
Não acreditava no meu corpo.
Estendia o braço na minha direcção. Empunhava o pincel a escorrer tinta e veracidade, delineando a figura ausente: tudo próximo. Mais amplamente.
Não lhe reconhecia legitimidade. Transpunha de si para a imagem. Eu, de seguida. E no jornal – página inteira – o retrato acabado ainda antes de a tinta aderir à tela. Antes da descoberta da pigmentação. Antes de cada coisa ter um nome. Antes de se dividir.
Um corpo expectante, sem instinto predador, que assumiu posição defensiva. A recuar, na minha direcção, até ao negrume que o envolve a partir das minhas mãos.
Equivalente.
À margem desse acontecimento, as palavras não serviam de explicação. Frágeis. Referências perdidas no desabamento dos conceitos e das alusões.
Fechava. Encobria com a opacidade da revelação.
Qualquer história redundante. Nenhuma lhe acrescentaria peso e dimensão: versos repetidos, manchas de tinta – gestos mecânicos que lançavam a suspeita sobre a figura. Sem olhar. Queima quando atinge, eu sei, mas não porque tenha o poder de acrescentar algo de novo com a sua assinatura. Unicamente pelo imperativo da preservação.
As palavras não lhe serviram. Nunca servem. O ditado e a sua melodia, de carteira em carteira, aperfeiçoados até ao eco. Depois, nas escadas do metropolitano ou na corrente da sala de espera de um médico, por exemplo: assassinas.
Compondo. O sentido não se deixa captar – músculos, tensão, energia. A morte rompia até me abandonar. Alfabeto Adiado, de José Ricardo Nunes
[Aos leitores que o desejem, a Deriva pode fazer chegar um exemplar autografado e com dedicatória]
Apresentação de Alfabeto Adiado, de José Ricardo Nunes, por Luís Mourão, dia 25 de Junho, pelas 21.30, no Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha.