Entre o mundo
e comum: a sílaba fechada
nesse acerto que é centro
Ana Luísa Amaral
As mãos não são verdadeiras nem reais... São mistérios que habitam na nossa vida... às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus...
Fernando Pessoa, Marinheiro
e comum: a sílaba fechada
nesse acerto que é centro
Ana Luísa Amaral
As mãos não são verdadeiras nem reais... São mistérios que habitam na nossa vida... às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus...
Fernando Pessoa, Marinheiro
Se fosse um intervalo é um texto nos bastidores da escrita: um capturar do instante da materialização do imaginado, é um estar “entre” (cf. Deleuze): é o exacto momento em que, não interrompemos o fluxo do texto, mas nos inserimos nessa onda preexistente.
De todos os livros de Ana Luísa Amaral – e em todos há uma forte componente reflexiva e metapoética – este é, porventura, aquele onde se procura com, mais veemência, o ponto de ebulição do acto da escrita – o momento em que o sonhado, o imaginado, o efabulado passa ao papel:
Enquanto é só razão, sei que consigo
Salvaguardar-me lúcida e pensada.
Mas mal te tento reorganizar
Numa memória nova ou recriada,
Retorno ao ponto zero em que me estás
(Amaral, 2009:19)
Não se trata de encontrar o ponto de origem da escrita, mas o momento em que o raciocinado passa a escrito. E o resultado – independentemente do esforço, da resistência, da alavanca – conta sempre com o génio: ficará sempre aquém ou além, nunca será o sonhado.
No princípio, mesmo antes do corpo do texto, mesmo antes de começar, temos a oficina do poeta, em pensado abandono:
mãos cruzadas, luz diagonante,
pus de lado papéis e
preparei-me
E eis que “em vez de verbo pela mão: / um verso.” (pg. 9 ): a poesia irrompe, mesmo quando o apetecido é outro, mesmo quando o que se procura é a ficção (como se a poesia o não fosse: “"Dentro do avião, agora: um tempo escuro: / as janelas sem tempo devagar, /e o meu conforto: leve tabuada,/ essa que rejeitei, em verso, à minha filha,/ só útil para o verso" (pg. 49)”:
esquecendo um dia os braços, procurei dar-te um nome, inventei nome falso mas real de ficção, cheguei mesmo à loucura (desabri¬da) do esquema para a história. estava tudo no esquema, o central é que não. e rasguei esquema e nome, que tu não respondias ao nome que inventara para ti. e como um sino falso de metal quebrado eram os nomes que suces¬siva¬mente te fui dando. (pg. 11)
A voz do texto assume o obstáculo, as resistências da escrita: a impossibilidade de sair do esquema já traçado e saltar para a história. É o texto em prosa a querer escrever-se e a poesia a surgir entre ele, a entremeá-lo, a intervalá-lo. E surge então o verso, um eco de uma narrativa que se pressente, mas que ainda não se consegue dizer. Assim, entre prosa e verso surge uma tensão, um jogo de reflexos, necessariamente, imperfeitos e incompletos: textos que são duplos, falsos de outros textos, de outras verdades. Duplos como o sinal que se vê ao espelho: “o lado avesso a Deus” (pg 25).
Os textos em prosa que intervalam os textos em verso – e aqui seguimos a lição de Irene Lisboa : "Ao que vos parecer verso chamai verso e ao resto chamai prosa" - reflectem entre si uma tensão entre a vigília (a prosa?) – e a semi-vigília (a poesia?), um desejo de “suspender o amor e suspender // o verso assim, tão pessoanamente, /oblíquo e masculino de fingir.”, porque não há razão pura ou emoção pura, há, no intervalo, também “uma chuva pequena e muito rente / à visão que se estende docemente / em direcção a mares e a porvires.” (pg.51)
Nestes versos, nestes textos, nas dobras dos textos há recantos, há recados, há segredos, há luzes e sombras. E é em cada prega, em cada luz, em cada brilho diagonal que a resistência acontece. Antes do par, antes do coração habitado, do fogo aceso, há um tempo de solidão, de afastamento, de pragmatismo, de rede - “Se o navio se debruça / em demasia,/ lá se vai horizonte / pré-quinhentos” (pg. 32), “em vez de rosas, pão” (pg.37) ou “o pesadelo / que os sonhos têm sempre” (pg. 46)
Este livro, numa estética que já vêm desde Entre Dois Rios e Outras Noites (2007), propõe um trabalho nos interstícios do dizer. No entanto, agora, há uma segunda voz que ganha espessura. Uma espécie de consciência que a intervalos irrompe no texto, uma voz que se quer afirmar. Uma voz que testa as margens: “este rio engrossou e ameaça transbordar as margens.” (pg.18) do poético, do dramático e do narrativo.
No intervalo do livro, surge o texto dramático, discrepâncias (a duas vozes), que trazem à memória quer Marinheiro, o drama estático pessoano, como o Antes de Começar, de Almada Negreiros, onde dois bonecos se descobrem o coração
Não há uma voz única: há uma multiplicidade de vozes. Nada de extraordinário na poeta, que já em a Génese do Amor convocava outras vozes para o texto (Natércia, Catarina, Beatriz, Laura, Dante, Petrarca, Camões). No entanto aqui, o jogo de vozes, de olhares, de perspectivas é levado mais longe: há vozes que interferem no próprio texto. Há vozes que “intervalam” o texto e o discutem no próprio acto de criação:
E a personagem? O elemento humano? É interessante começar assim. Mas bastaria o quadro na cozinha. Depois disso, a memória alimenta-se de gente: quem lá vivia, como era, o seu nome (inven¬tado, claro). Descreve. Concentra a narrativa nesse corpo. Fá-lo entrar na cozinha, passar à sala onde as cadeiras lembravam Came¬lot, deter-se no espelho grande, bem urdido nesse canto, atraves¬sar a ausência de portas. Veste por dentro a personagem. E esquece a dis¬sonância. (pg. 55)
A Voz 2 – “função de alerta” pg.62 - assume-se como um coro trágico, um espaço de contraditório onde o texto discute com o texto, a sombra (ou a luz), o avesso, o bastidor. E esta Voz 2 não poderá ser a do leitor: “E a escrita é assim mesmo: o que tu sabes, eu sei também. O que não sabes, se me apetecer, in¬vento-o.” (pg. 56) ou a voz do autor quando transmudado em leitor de si mesmo?
Ana Luísa Amaral trabalha nas margens genológicas, dissolvendo os géneros como uma espuma. É um trabalho no intervalo, uma “dissonância de vozes” (pg. 62).
Um dos mais interessantes contos de Mário de Carvalho, A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho, começa assim:
O grande Homero às vezes dormitava, garante Horácio. Outros poetas dão-se a uma sesta, de vez em quando, com prejuízo da toada e da eloquência do discurso. Mas, infelizmente, não são apenas os poetas que se deixam dormitar.Os deuses também. Assim aconteceu uma vez a Clio, musa da História que, enfadada da imensa tapeçaria milenária a seu cargo...."
A desatenção divina, que leva Clio a entregar-se nos braços de Morfeu, deixa que os tempos por momentos de toquem. É nesta fantasia que leio Se fosse um intervalo: entre géneros, entre son(h)os, uma chuva de “luminosas partículas de pó” (pg. 86) que se tocam, mas não se confundem. E a nossa Clio, aqui a voz autoral, deixa que aconteçam milagres:
Podem acontecer, e então a música
decerto estará lá,
que gira em torno de eixo feito de outra luz.
Poderia ser Deus, ou paz.
Sentir. E de repente o mundo a acontecer,"” –
(pg. 96)
De todos os livros de Ana Luísa Amaral – e em todos há uma forte componente reflexiva e metapoética – este é, porventura, aquele onde se procura com, mais veemência, o ponto de ebulição do acto da escrita – o momento em que o sonhado, o imaginado, o efabulado passa ao papel:
Enquanto é só razão, sei que consigo
Salvaguardar-me lúcida e pensada.
Mas mal te tento reorganizar
Numa memória nova ou recriada,
Retorno ao ponto zero em que me estás
(Amaral, 2009:19)
Não se trata de encontrar o ponto de origem da escrita, mas o momento em que o raciocinado passa a escrito. E o resultado – independentemente do esforço, da resistência, da alavanca – conta sempre com o génio: ficará sempre aquém ou além, nunca será o sonhado.
No princípio, mesmo antes do corpo do texto, mesmo antes de começar, temos a oficina do poeta, em pensado abandono:
mãos cruzadas, luz diagonante,
pus de lado papéis e
preparei-me
E eis que “em vez de verbo pela mão: / um verso.” (pg. 9 ): a poesia irrompe, mesmo quando o apetecido é outro, mesmo quando o que se procura é a ficção (como se a poesia o não fosse: “"Dentro do avião, agora: um tempo escuro: / as janelas sem tempo devagar, /e o meu conforto: leve tabuada,/ essa que rejeitei, em verso, à minha filha,/ só útil para o verso" (pg. 49)”:
esquecendo um dia os braços, procurei dar-te um nome, inventei nome falso mas real de ficção, cheguei mesmo à loucura (desabri¬da) do esquema para a história. estava tudo no esquema, o central é que não. e rasguei esquema e nome, que tu não respondias ao nome que inventara para ti. e como um sino falso de metal quebrado eram os nomes que suces¬siva¬mente te fui dando. (pg. 11)
A voz do texto assume o obstáculo, as resistências da escrita: a impossibilidade de sair do esquema já traçado e saltar para a história. É o texto em prosa a querer escrever-se e a poesia a surgir entre ele, a entremeá-lo, a intervalá-lo. E surge então o verso, um eco de uma narrativa que se pressente, mas que ainda não se consegue dizer. Assim, entre prosa e verso surge uma tensão, um jogo de reflexos, necessariamente, imperfeitos e incompletos: textos que são duplos, falsos de outros textos, de outras verdades. Duplos como o sinal que se vê ao espelho: “o lado avesso a Deus” (pg 25).
Os textos em prosa que intervalam os textos em verso – e aqui seguimos a lição de Irene Lisboa : "Ao que vos parecer verso chamai verso e ao resto chamai prosa" - reflectem entre si uma tensão entre a vigília (a prosa?) – e a semi-vigília (a poesia?), um desejo de “suspender o amor e suspender // o verso assim, tão pessoanamente, /oblíquo e masculino de fingir.”, porque não há razão pura ou emoção pura, há, no intervalo, também “uma chuva pequena e muito rente / à visão que se estende docemente / em direcção a mares e a porvires.” (pg.51)
Nestes versos, nestes textos, nas dobras dos textos há recantos, há recados, há segredos, há luzes e sombras. E é em cada prega, em cada luz, em cada brilho diagonal que a resistência acontece. Antes do par, antes do coração habitado, do fogo aceso, há um tempo de solidão, de afastamento, de pragmatismo, de rede - “Se o navio se debruça / em demasia,/ lá se vai horizonte / pré-quinhentos” (pg. 32), “em vez de rosas, pão” (pg.37) ou “o pesadelo / que os sonhos têm sempre” (pg. 46)
Este livro, numa estética que já vêm desde Entre Dois Rios e Outras Noites (2007), propõe um trabalho nos interstícios do dizer. No entanto, agora, há uma segunda voz que ganha espessura. Uma espécie de consciência que a intervalos irrompe no texto, uma voz que se quer afirmar. Uma voz que testa as margens: “este rio engrossou e ameaça transbordar as margens.” (pg.18) do poético, do dramático e do narrativo.
No intervalo do livro, surge o texto dramático, discrepâncias (a duas vozes), que trazem à memória quer Marinheiro, o drama estático pessoano, como o Antes de Começar, de Almada Negreiros, onde dois bonecos se descobrem o coração
Não há uma voz única: há uma multiplicidade de vozes. Nada de extraordinário na poeta, que já em a Génese do Amor convocava outras vozes para o texto (Natércia, Catarina, Beatriz, Laura, Dante, Petrarca, Camões). No entanto aqui, o jogo de vozes, de olhares, de perspectivas é levado mais longe: há vozes que interferem no próprio texto. Há vozes que “intervalam” o texto e o discutem no próprio acto de criação:
E a personagem? O elemento humano? É interessante começar assim. Mas bastaria o quadro na cozinha. Depois disso, a memória alimenta-se de gente: quem lá vivia, como era, o seu nome (inven¬tado, claro). Descreve. Concentra a narrativa nesse corpo. Fá-lo entrar na cozinha, passar à sala onde as cadeiras lembravam Came¬lot, deter-se no espelho grande, bem urdido nesse canto, atraves¬sar a ausência de portas. Veste por dentro a personagem. E esquece a dis¬sonância. (pg. 55)
A Voz 2 – “função de alerta” pg.62 - assume-se como um coro trágico, um espaço de contraditório onde o texto discute com o texto, a sombra (ou a luz), o avesso, o bastidor. E esta Voz 2 não poderá ser a do leitor: “E a escrita é assim mesmo: o que tu sabes, eu sei também. O que não sabes, se me apetecer, in¬vento-o.” (pg. 56) ou a voz do autor quando transmudado em leitor de si mesmo?
Ana Luísa Amaral trabalha nas margens genológicas, dissolvendo os géneros como uma espuma. É um trabalho no intervalo, uma “dissonância de vozes” (pg. 62).
Um dos mais interessantes contos de Mário de Carvalho, A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho, começa assim:
O grande Homero às vezes dormitava, garante Horácio. Outros poetas dão-se a uma sesta, de vez em quando, com prejuízo da toada e da eloquência do discurso. Mas, infelizmente, não são apenas os poetas que se deixam dormitar.Os deuses também. Assim aconteceu uma vez a Clio, musa da História que, enfadada da imensa tapeçaria milenária a seu cargo...."
A desatenção divina, que leva Clio a entregar-se nos braços de Morfeu, deixa que os tempos por momentos de toquem. É nesta fantasia que leio Se fosse um intervalo: entre géneros, entre son(h)os, uma chuva de “luminosas partículas de pó” (pg. 86) que se tocam, mas não se confundem. E a nossa Clio, aqui a voz autoral, deixa que aconteçam milagres:
Podem acontecer, e então a música
decerto estará lá,
que gira em torno de eixo feito de outra luz.
Poderia ser Deus, ou paz.
Sentir. E de repente o mundo a acontecer,"” –
(pg. 96)