quinta-feira, março 19, 2009

Problema de Expressão, por Paula Cruz

Fotografia de Mafalda Capela


I should not dare to be so sad”Emily Dickinson

e que por isso, por ser triste, porsermos todos tristes, não mo deviam dizer.Digo-te por isso que não era minha intenção dizer-te mais uns versos tristes e sem luz, e por isso, só por isso,não era minha intenção dizer-te nada.”
(Leal, 2008: 17)

Ninguém está triste, digo: ninguém é triste. Agora, ninguém entristece, todos deprimem. A tristeza é sentimento; a depressão é doença. O sentimento esconde-se, a doença trata-se. O desconcerto desta tristeza anunciada vem, exactamente, pelo despudor de se afirmar a tristeza. Ser triste não é um estado, é a condição de ser norte. Norte nos sentidos, norte na distância, norte como a Madame de Stäel que, ao distinguir a poesia do Norte e do Sul, opta pela poesia do Norte, pois a considera mais em consonância com o pensar filosófico: a tristeza permite conhecer melhor o carácter do Homem. A tristeza é obsessiva, é minuciosa, é exacta como estes versos.
Em “Digo-te por isso” (idem, ibidem) regressamos a uma palavra-chave do cancioneiro literário português: triste. O mais provável é que este uso tenha sido meramente acidental, contudo vale a pena reler o texto com esta memória, com o peso, que o adjectivo “triste” tem no nosso imaginário literário . Não deve existir cantiga mais triste que a célebre cantiga “Partindo-se”: “Partem tão tristes, os tristes, / tão fora de esperar bem / que nunca tão tristes vistes / outros nenhuns por ninguém.” Ainda que em sentidos diferentes, do que na cantiga de João Ruiz Castelo Branco, a repetição da palavra triste, neste poema de Filipa Leal: trilha-nos. É uma tristeza que pré-existe e que não tem e que não precisa e que não quer ter explicação: não é triste “porque” ou “apesar de”, é-o.
Digo-te por isso” apresenta-se como uma resposta a quem quer um “fiat lux” forçado, a quem quer mascarar a tristeza, não entendendo que a tristeza é uma condição, não uma escolha. O eu que se esconde (ou se mostra) é bem mais contido que o Campos que recusa o rebanho:
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ou que o Régio:
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!

Enquanto que estes dois poetas estridentes ocupam o espaço com o grito da revolta e da rebeldia, a voz de “Digo-te por isso” é firme, mas não se afirma pelo grito, não precisa de o fazer, sabe que não lhe adianta fazê-lo. Não diz o que não quer, diz antes o queria não ter feito: “que não era [sua] intenção dizer-te mais uns versos tristes” . Não há agressão ao “tu”, há uma distância provocada por um problema de incomunicabilidade. Talvez, o “eu” que se esconde (ou se mostra no texto) não quisesse dizer nada disto, porém há sempre falhas na comunicação, esse é o problema de ser norte. Quando se endereça uma carta, à partida, não estaremos, depois, presentes para nos explicarmos.
O primeiro poema do livro é o selo de um cêntimo . Se calhar a poeta que empresta voz ao remetente destes versos não concorda. Muito provavelmente, para ela o primeiro poema é a Arte Poética (idem, ibidem:9) ou a provocação que a antecede: “É isto que acontece quando se escreve sobre o resto” (idem, ibidem:8) e por “isto”, entenda-se, poesia no sentido mais preciso (e precioso). Mas isso não interessa, agora que os textos lhe fugiram do domínio, cada um dos destinatários/leitores criará novos sentidos, novos nortes. E aquele selo faz todo o sentido. E mesmo que o selo seja uma falsa pista para a exegese destes versos, certo é que, como numa carta longamente pensada, também nos versos deste livro há uma preocupação com a precisão da palavra, com o destino de cada sílaba, com o norte de cada sentido. De facto: “escrever não é fácil / que viver não é fácil” (idem, ibidem:17) , ainda mais quando a vida e a escrita se amalgamam, quando se procura escrever a vida e não descrevê-la como os tais “poetas de supermercado” (idem, ibidem: 24).

Nota: Não era minha intenção escrever este texto. Pensei escrever sobre as Artes Poéticas de Filipa Leal e de Nuno Júdice, mas um verso de Adrienne Rich , -The length of daylight /this far north”, em Integrity, torceu-me a atenção. E em redor desse verso, sem árvores à volta, cresceu o texto. Não falei do todo que é O Problema de Ser Norte porque o silêncio e a luz não se dizem, porque é preciso primeiro chegar ao “fim do pensamento.” (idem, ibidem:43)
(2008) Leal, Filipa O problema de ser norte, Deriva, Porto.