O J. foi baleado no bairro onde mora e onde se encontrava a jogar futebol. Conhecia-o. Tinha 11 anos. Estive com ele em várias ocasiões num programa de acção tutorial. Miúdo inteligente, respondão, provocador, mas acabava por fazer o que lhe propunhamos: uma ficha de cálculo, outra de português, ou de História (aí escapava-lhe a preferência para as tácticas de caça e armas da Pré-História). Lembro-me de o ter ajudado a fazer cálculos de médias de viagens em distância e tempo. Não se interessava muito até conseguir captar-lhe a atenção atribuíndo marcas sonantes aos carros e falando da VCI ou da A1. «Se o teu Ferrari for a 210 km/h, pela A1 fora, e quiseres ir a Coimbra que fica a 150 Km, chegas lá daqui a quanto tempo?» Era assim o J. Na sexta-feira, depois de ter sido baleado por um bando rival, ainda me dirigi a amigos para saber o seu estado. «Mal, mal...deram-lhe dois tiros. Um no braço e outro na perna!». Fiquei, mais uma vez, com um aperto no estômago e pensei por que razão não tinha este puto um boletim clínico à disposição? Pensei na «lógica dos sentimentos» que o Vasco Pulido Valente critica (e bem), de Rousseau e dos filhos dos inúteis que saem todos os dias na merda das revistas e comparei tudo isto com a vida de J. e o silêncio de um ataque brutal aos seus onze anos de vida. Mesmo que saiba que não é um santo, mesmo que saiba que a tal lógica dos sentimentos é a única coisa igualitária porque junta o irreconciliável, julgo sempre que a acção política é responsável por isto. Porque, voltando a VPV e a J.: não me interessa saber se o Rousseau é percursor da «lógica do sentimento». Mas sei qual a sua posição (contra Voltaire, diga-se) no terramoto de 1755 de Lisboa: se houve aquele desastre foi porque se construiu a cidade em cima de uma falha sísmica. Quais deuses? Quais falhas de previsão? Que ciência poderia salvar Lisboa se os homens a construiram contra ela?
Não me venham, portanto, com merdas: o J. conheceu cedo demais a violência física bem longe dos lares da classe média. Num bairro cada vez mais gueto, onde a droga impera e até baixou de preço. Estamos a educá-lo numa falha sísmica. Nem Rousseau nos pode valer. Trata-se de estupidez e avidez de lucros e, aí, as defesas que temos são políticas.
Não me venham, portanto, com merdas: o J. conheceu cedo demais a violência física bem longe dos lares da classe média. Num bairro cada vez mais gueto, onde a droga impera e até baixou de preço. Estamos a educá-lo numa falha sísmica. Nem Rousseau nos pode valer. Trata-se de estupidez e avidez de lucros e, aí, as defesas que temos são políticas.
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