Odeio críticos de arte, críticos literários, políticos, comentadores políticos, padres, chuis – eles alimentam-se do sangue dos inocentes.
Odeio os académicos, “idiotas especializados” para quem o essencial é invisível. Se pudesse colocava-os todos no caixote do lixo da história, a lerem os discursos do Cavaco ou, pior ainda, a obra completa em 2 volumes e 3 assoalhadas à Lapa da Margarida Rebelo Coiso.
Em contrapartida, gosto da força do vento, da boquinha da noite, das curvas galegas, na nádega esquerda do Sócrates – que é, de resto, a única coisa de esquerda que ele tem -, gosto das musas de alterne, gosto de comer brigadeiros, às escuras.
Gosto de poetas. Gosto da Filipa. Gosto de poetas que tenham arma. A alma é a arma da Filipa.
Não farei, nem saberia fazer, uma abordagem académica à obra da Filipa. A minha aproximação à obra da Filipa e à própria Filipa, enquanto mulher, será, pois, parcial, emocional, poética, quase apaixonada, ou não fosse ela uma grande grande amiga.
Esta tarde jogo em casa.
Remato directamente ao coração desarrumado da Filipa.
Ou, como diriam os surrealistas, “espero pois que os meus auditores compreendam que não sou um erudito, nem um filósofo, mas sim um longo diálogo”.
Conheci a Filipa numa tarde solarenga de Setembro.
Esvaía-se, sem graça, o ano de 2002.
Combinámos, então, a sua primeira actuação nas “Quintas de Leitura” do TCA, onde, meses depois, viria a ler, com grande coragem e brilho, um poema de António Maria Lisboa:
RÊVE OUBLIÉ
Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irreflectido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti
…
Lembro-me que nessa tarde lhe contei uma história:
Em Maio de 1968, em plena crise francesa, o general De Gaulle, tentando pôr termo à escalada de violência nas ruas de Paris, mandou chamar, com carácter de urgência, o líder estudantil. Chamava-se Daniel Cohn-Bendit. 23 anos, estudante de sociologia, baixo, gordinho, olhos brilhantes e azuis, sardas, espirituoso, filho de mãe francesa e pai judeu alemão. Dany, le Rouge, para os amigos.
De Gaulle perguntou-lhe à queima-roupa:
- Mas, afinal, o que é que vocês querem?
Daniel Cohn-Bendit respondeu-lhe sem titubear:
-QUEREMOS TUDO, JÁ!
A minha amizade com a Filipa sela-se, assim, à volta de um slogan revolucionário do Maio de 68:
QUEREMOS TUDO, JÁ!
Ou, tão simplesmente, SEJAM REALISTAS, PEÇAM O IMPOSSÍVEL.
Talvez inspirada e possuída por este espírito radical do Maio de 68 parisiense, a Filipa ousou e venceu. Exigiu tudo à Poesia. Encostou uma estrofe à garganta da Poesia e a Poesia, rendida, já lhe deu praticamente tudo:
Em quatro anos, a Filipa ao leme do suplemento “Das Artes,das Letras” do “Primeiro de Janeiro” , caneta à altura dos rins, tornou-se numa das mais conceituadas jornalistas culturais da cidade. Recordo e recomendo-lhes as notáveis entrevistas que fez a António Ramos Rosa, Agustina, Adélia Prado, Nuno Júdice, José Luís Peixoto, só para mencionar algumas. À Segunda-feira, num quiosque perto de si.
Pela voz da Filipa passam, todos os anos, alguns dos momentos mais belos da moderna poesia portuguesa. Com efeito, em dezenas de recitais já efectuados, a Filipa dá voz e alma e corpo aos nossos Poetas, à nossa língua. A Filipa pega a Pátria pelos cornos.
Como se não bastasse, a Filipa também é Poeta. “E quis achar palavras que alguém pudesse amar”. Deu à luz 3 livros e promete não ficar por aqui.
“Lua Polaroid” – o primeiro filho, um parto sem dor e sem espinhas. Estilo escorreito, caneta ao lado da Vida.
“Talvez os Lírios Compreendam” – alguns 25 poemas. Um livro confessional de grande fôlego: “Talvez a poesia seja isto mesmo: este medo das palavras. Que me fogem. Um nó nos dedos de solidão.”
“A cidade líquida e outras texturas”: labirinto líquido, verdade a preto e branco. O mais refinado dos 3 livros já publicados. Um “eu” entre parêntesis, como a autora gosta de o definir.
A Filipa Leal é já uma voz importante da novíssima poesia portuguesa.
A Filipa escreve para quem a sabe ler.
Soube estabelecer uma relação de compromisso com o seu próprio tempo, soube captar a contemporaneidade e, mais importante de tudo, a Filipa sabe que a poesia tem o dever social de dar saída às angústias da sua época.
Cito, a este respeito, Artaud:
“O artista que não abrigou no fundo do seu coração o coração da sua época, o artista que ignora ser um bode expiatório, que o seu dever é atrair a si, como um íman, as fúrias dispersas da época, de modo a livrá-la do seu mal-estar psicológico, não é um artista”.
…
Fixemo-nos, por fim, no novo livro de Filipa Leal – “A cidade líquida e outras texturas”.
Diga-se, antes de tudo, que é um objecto apetecível, que apetece levar para a cama e adormecer com ele, sobre ele, e ler outra vez e marcar e dobrar e estraçalhar.
Tem no seu interior uma fotografia bela de Mafalda Capela – a rima mais-que-perfeita. A Mafalda é uma artista que me fascina pelo seu talento, pela sua sensibilidade e, não menos importante, pela elegância com que se conduz na vida.
…
A Poesia da Filipa é radicalmente urbana e faz constantes alianças com a prosa. Dá atenção à língua e à própria dimensão social da vida quotidiana.
Digamos que o novo livro da Filipa Leal tem o quotidiano como ponto de partida, mas, no momento seguinte, esse quotidiano é transfigurado, é ampliado, é transtornado.
Na escrita da Filipa as borbulhas são pontos de exclamação, os lábios são trampolins para o infinito, os olhos são archotes para comer a noite à traição, o suor é um rio que desagua e não desagua no mar da tranquilidade.
A escrita da Filipa molda-se à alma, é líquida, torrencial quase sempre, é forte – crava as garras certeiras na correnteza indomável da Vida. A escrita da Filipa não tem pé. Apanha-nos, muitas vezes, com a boca na Vida.
A escrita da Filipa é viciante:
São três linhas psicotrópicas de Poesia – a cidade líquida; nós, a cidade; a cidade esquecida.
Cheirem a primeira linha – não pararão mais até ao orgasmo, até à libertação final:
A solidão atravessa a praça, triunfal, ganha cor, ganha corpo, e invade-nos em todas as artérias. Só o Amor a pode deter. “Nós reduziremos a arte à sua expressão mais simples que é o amor” (Breton). Só a caneta da Filipa pode inverter o rumo inexorável da história – debruçada numa das varandas da cidade ajudas, com o teu sorriso contra todos os riscos, o Douro a correr descalço. Debruçada numa das varandas da cidade gritas para a multidão: Estamos rodeados de emboscadas – tanto melhor!
Filipa:
Entro no teu poema como se fosse vírgula.
Juntos, convenceremos a madrugada a correr para nós, sei lá…, atiraremos milho às estrelas, convenceremos a morte a pagar portagem.
Termino, à boa maneira bretoniana, louco amor louco, dizendo-te:
“Gosto de saber-te loucamente amada”.
JOÃO GESTA
Apresentação do livro «A Cidade Líquida e Outras Texturas» (ed. Deriva), de Filipa Leal
Clube Literário do Porto, 18 de Outubro, 2006