A CIDADE LÍQUIDA
A cidade movia-se como um barco. Não. Talvez o chão se abrisse em algum lado. Não. Era a tontura. A despedida. Não. A cidade talvez fosse de água. Como sobreviver a uma cidade líquida?
(Eu tentava sustentar-me como um barco.)
As aves molhavam-se contra as torres. Tudo evaporava: os sinos, os relógios, os gatos, o solo. Apodreciam os cabelos, o olhar. Havia peixes imóveis na soleira das portas. Sólidos mastros que seguravam as paredes das coisas. Os marinheiros invadiam as tabernas. Riam alto do alto dos navios. Rompiam a entrada dos lugares. As pessoas pescavam dentro de casa. Dormiam em plataformas finíssimas, como jangadas. A náusea e o frio arroxeavam-lhes os lábios. Não viam. Amavam depressa ao entardecer. Era o medo da morte. A cidade parecia de cristal. Movia-se com as marés. Era um espelho de outras cidades costeiras. Quando se aproximava, inundava os edifícios, as ruas. Acrescentava-se ao mundo. Naufragava-o. Os habitantes que a viam aproximar-se ficavam perplexos a olhá-la, a olhar-se. Morriam de vaidade e de falta de ar. Os que eram arrastados agarravam-se ao que restava do interior das casas. Sentiam-se culpados. Temiam o castigo. Tantas vezes desejaram soltar as cordas da cidade. Agora partiam com ela dentro de uma cidade líquida.
(Eu ficara exactamente no lugar de onde saiu.)
Filipa Leal
Sobre A Cidade Líquida e Outras Texturas:
A poesia de Filipa Leal é inumana e luminosa. Os seus poemas vivem como libertação individual numa deriva constante onde o traço aparentemente aleatório do voo de um pássaro se cruza, livre, na construção de uma arquitectura louca de uma cidade estranhamente «presa nas palavras». Esta ligação íntima, proposta aos que lemos A Cidade Líquida e Outras Texturas, faz emergir essa individualidade composta na construção de uma rota que recusa um qualquer destino comum e sedentário e que se afirma no desenho límpido de uma geopoética de uma claridade absoluta.
Filipa Leal, nasceu em 1979 e vive no Porto. Jornalista cultural. Apresenta uma já vasta e diversificada experiência profissional onde se destaca a sua colaboração semanal no Suplemento Literário «das Artes e das Letras» de O Primeiro de Janeiro, uma colaboração estreita na Fundação da Casa de Mateus e de várias revistas culturais de língua inglesa e portuguesa. Apresentou a sua tese de mestrado subordinada ao tema «Aspectos do Cómico em Alexandre O’Neill, Adília Lopes e Jorge Sousa Braga» e frequentou um BA Media Studies – Print Journalism na Universidade de Westminster, em Londres. Destacam-se as várias reportagens, artigos e entrevistas realizadas a diversas figuras da poesia e literatura portuguesas e estrangeiras. Recitadora, locutora e organizadora de eventos poéticos em colaboração, entre outras entidades, das Quintas da Leitura do Teatro do Campo Alegre.
Tem publicados os livros LUA-POLAROID (ficção), 2003, Corpos Editora, e TALVEZ OS LÍRIOS COMPREENDAM (poesia), 2004, Cadernos do Campo Alegre.
Filipa Leal, A Cidade Líquida, a sair a 28 de Outubro, no Clube Literário do Porto, às 18h. Com João Gesta e a autora. Em Lisboa, apresentação do livro a 18 de Novembro, às 18:30, na Fnac do Chiado, com a presença de Nuno Júdice.
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