Companhia das Letras, Março de 2025
«Lavores de Ana», não deixará ninguém indiferente o que, por si só e perante a anemia da literatura portuguesa contemporânea, é uma mais-valia. Mas este livro é muito mais do que isso. É um livro corajoso, extremamente bem escrito e que nos interpela directamente, sejamos nós quem formos ou julgamos ser. Sinceramente, nunca esperei um livro com esta dose de frontalidade e, paradoxalmente, de subtileza como a que demonstra a autora e mesmo que nos avise, já num final em forma de quase apoteose, deste livro que guardarei sempre: «Poderia ser a minha história.» Provavelmente não o será. É, pois, a história de «Ana, Anna, Annarella, Annarè...» que divide a sua vida jovem (a autora nasceu em 1984), de uma geração que se foi daqui para fora, entre Lisboa e Nápoles, entre o sul de Portugal e o de Itália. Ana atravessa a quadrícula de Nápoles connosco, traduzindo-nos os dialectos, apresentando-nos os seus desejos, vivendo no bairro de Sanitá, levando-nos a Sorrento de Vespa com os seus amores Enzo e depois Marco que ela julga serem eternos e cuja separação se torna fácil. Espantosamente fácil. Muito mais tarde volta a Nápoles e custa-lhe reconhecê-la com a gentrificação: «Estamos constantemente em locomoção...» e a quantidade de turistas cansa-a, rendidos também à «febre Ferrante».
Ana luta contra a solidão de um trabalho contínuo de tradução (Ana Cláudia Santos é igualmente uma tradutora literária, que reconhecerão facilmente), de teses de mestrado e de doutoramento, dá aulas de português para italianos e convive com napolitanos, sejam eles, ou elas, de classes diferentes o que nos dá uma visão social muito verosímil do romance. Mas também nos conta a História de Nápoles lembrando-nos a frase de Goethe «Vedi Napoli e poi muori.», os pátios dos palazzos onde tudo acontece, ou aconteceu desde o século V a.C., aquela Neapolis que alguns gregos tiveram a ousadia de criar uma nova cidade ao lado de Partenope, o nome de uma das três sereias que se suicidaram por Ulisses as ter ouvido. Os gregos ganharam a cidade aos etruscos pouco dados a militarismos e amantes da cultura, sabemos no que estas coisas dão.
Ana, aos 40 anos, pensa ser mãe, não por qualquer necessidade social, religiosa ou reprodutora imposta, e descobre a possibilidade de não pode ter filhos. A parte IV, «Sopro», do livro (tem cinco capítulos) constitui as páginas mais belas e inquietantes do livro, porque é uma das interpelações mais pessoais que a personagem nos acomete directamente, a nós, leitores:
«Se uma mulher diz ao mundo que está a tentar engravidar, e o tempo passa e nada acontece, em torno dela conjectura-se. Pensa-se que, não havendo concepção, haverá alguma coisa nela que não funciona bem. Nesse aspecto, não reina no mundo a falta de imaginação. Presume-se que será por ela ter muito ou pouco peso; por trabalhar demais; por fumar; por beber demasiado álcool ou demasiado café; por não dormir o suficiente; por não tentar o suficiente; por não querer realmente. Será dos óvulos, do útero, das trompas? Será a Mãe Natureza, na sua sabedoria recôndita, a fazer uma selecção secreta para impedir que aquela mulher venha a ser uma mãe defeituosa? Que haverá nas entranhas dela, nas profundezas do seu corpo, que obste à concepção?» (pág.98)
Impossível esquecer a forma como Ana Cláudia Santos nos permite sentir Nápoles como ela no-la apresenta: «Por vezes, penso que Nápoles foi a única coisa que me aconteceu. No entanto, o resto da minha vida e os meus diários desmentem-no.» Há duas estadias longas nesta cidade e a autora despede-se dela numa quase apoteose, que eu referi logo no início, muito difícil de encontrar na literatura contemporânea que eu conheça. Passa-se na Baia de Sorgeto:
«Há qualquer coisa na águas deste sítio. Dizem que são ricas em minerais, que rejuvenescem e possuem propriedades curativas. A mim, excitam-me profundamente. Sentamo-nos no minúsculo molhe, em mornos degraus de pedra, absorvendo a energia geotermal. Numa zona mais abrigada, debaixo da rocha, cobrimos o rosto e o peito com uma lama verde, que depois lavamos na água. (...) Estendo-me numa pedra morna e viro a cabeça para o mar. Atrás de mim, as rochas escarpadas desenham a enseada. Por instantes, fez-se silêncio, calam-se as vozes dos banhistas, o marulhar das águas é imperceptível. Tomo consciência do meu corpo e da minha respiração, relaxo e alongo a musculatura, que redescubro, sólida, consistente. Ílio, ísquio, púbis. Os pequenos ossos do pavimento pélvico. Deixo-me deslizar da pedra para a água, que me envolve em ondas suavíssimas. Sou mais do que um corpo.» (pág.120)
Li este livro num só dia. Lá fora, um apagão. E esta cena, como outras descritas desta forma tão intensa, fizeram-me recordar o que Ana Cláudia Santos nos propôs numa Itália em películas a preto e branco com uma Sophia Loren ou Ingrid Bergman no sopé do Vesúvio, ou um Benedetto Croce, ou um Goethe, ou ainda, sob responsabilidade minha, de Susan Sontag.
Depois de o ler aconselho vivamente ouvir-se a Suite nº4 de Handel, aplicando a teoria da deriva vasculhando excertos do livro. Não o abandonem logo.
alc