segunda-feira, abril 15, 2024

«Os Galifões e a luta contra a praxe na Coimbra dos anos 70, seguido de Os Quentes Anos 70 em Coimbra», M. Ricardo de Sousa e F. Carmichael

 


Letra Livre, col. Anátema, 2024
Livro interessante e um contributo importantíssimo para a história da radicalidade em Coimbra nos anos 70. Mais visivelmente entre o final dos anos 60, com a crise de 69 na cidade estudantil, o final dos anos 70 e início dos anos 80. Ricardo Sousa, que assina «Os Galifões e a luta contra a praxe na Coimbra dos anos 70», sendo seguido por F. Carmichael numa pequena nota em «Os quentes anos 70 em Coimbra» apresenta-nos um breve ensaio sobre a República dos Galifões e a centralidade revolucionária desta casa/comuna para as intervenções radicais de uma Coimbra que se ergueu contra a praxe académica e trilhou um caminho alternativo e provocador a uma cidade que preferiu a desgraçada tradição basbaque com o seu cortejo de imbecilidades e fluxos de autoritarismo político das direitas e das esquerdas reformistas, baseados em conceitos hierárquicos de chefias, mandos e violências sobre os caloiros que, ávidos de serem castigados, as aceitaram, servis. A grande maioria da população juntou-se à astúcia restauracionista fascista, à cupidez comercial e ao comprometimento universitário, levando Coimbra ao estado comatoso em que encontra hoje. Acelerou-se, então, a destruição do operariado sempre incómodo para a universidade que já ensinava pouco, os bairros operários com tradições de luta que passaram, por exemplo, na participação de ferroviários no 18 de Janeiro de 1934, ou ainda antes, em confrontos abertos contra os Camisas Azuis de Rolão Preto em plena baixa de Coimbra e que se soldaram por dezenas de feridos. Muitos desses operários anarquistas acabaram (e morreram) no Tarrafal. Tudo isso fez parte do passado de Coimbra que esta teima em ostracizar. 

Coimbra revolta-se em 1962 e, principalmente, em 69 com a greve estudantil que levaram muitos estudantes à prisão, à tortura, à clandestinidade, à fuga para o estrangeiro e à incorporação militar forçada na Guerra Colonial. Esta luta está relativamente bem documentada. Para além disso, em 69, como também trata o ensaio de Ricardo Sousa, existiu um laivo de modernidade e de resistência ao fascismo que fugia claramente ao que era proposto pela oposição democrática, liderada pelo PCP e, em 1972, com a recém-formada UEC. Valham os estudos de Manuela Cruzeiro, Rui Bebiano ou Miguel Cardina, entre outros, assinalados por Ricardo Sousa, que referem a existência destas correntes, e teria esta luta sido atirada para o esquecimento histórico, não fosse, aqui e ali, sido lembrada, embora de um modo disperso, diga-se. Este livro é uma prova de que há uma resistência ao esquecimento.

A luta contra a praxe toma a dianteira na análise de Ricardo Sousa que lembra igualmente o seu percurso pessoal, juntamente com outros estudantes radicais onde sobressai a acção do Karpa e de muitos outros, citados no livro da Letra Livre. Mas há igualmente o cuidado de referir as bases teóricas de um movimento que era extremamente diverso e plural dentro daqueles que acreditavam ainda numa retoma do que foi a alegria popular do PREC e o movimento das ocupações por todo o país. Em Coimbra, praticamente toda a Sé Velha e Praça da República era domínio dos estudantes revolucionários enquadrados nas repúblicas onde pontificavam comunistas, maoístas, trotskistas, anarquistas, conselhistas e situacionistas para além de muitos que não tinham a pachorra para rótulos mas que alinhavam nesse espaço de liberdade que era, sem dúvida, a chamada «zona vermelha» com que o Diário de Coimbra, jocosamente e por analogia com a mesma zona de Amesterdão, apelidava o conjunto da teia urbana que recusava serenatas e capas e batinas. Queria-se muito mais, mas não esperávamos que o DC o compreendesse. Miserável foi o fim desta liberdade conquistada. O jornal publica em 1979, as fotografias, em primeira página, do desastre de viação horrível em que morreram, carbonizados, cinco estudantes (Victor, Pinto, Freitas, Patrícia e Luísa) que eram repúblicos dos Galifões. O choque foi, então, grande para quase toda a população estudantil e sentimos que algo mais se perdeu para além daquelas vidas. A recuperação da praxe e com ela os governos do PS e da AD levaram a um reforço da repressão sobre as repúblicas e a uma «normalização» das instituições que no Prec levaram um abanão consistente. A violência e raiva fascistas e «democráticas» continuaram e em 1985 (pessoalmente já não estava em Coimbra) um estranho fogo acabou com a Comuna dos Galifões, sem que houvesse um inquérito digno desse nome.

Este livro de Ricardo Sousa merece ser lido. Não só pela revisitação dos lugares que nos foram comuns em anos seguidos de liberdade em que fizemos Coimbra um lugar onde valia a pena a «arte de viver» tão caro a Vaneigem, mas também pelo cruzar de filamentos revolucionários e de resistência ao capitalismo que tivemos (alguns de nós ainda têm) a ousadia de o confrontar. Citados pelo autor lembramo-nos ainda do GAME (Grupo Anti-Militarista e Ecológico da AAC onde pontificava o Francisco Pedroso Lima e Pais de Sousa, para além do próprio Ricardo Sousa), do CITAC, da Centelha de Soveral Martins (onde, para além de literatura política alternativa, se criou a Ekomedia, mais tarde, em rede com a antiga Indymedia) para além de muitas secções da AAC quando esta se mostrava independente e em contactos íntimos com as repúblicas onde, sem dúvida, os Galifões não deixaram de ter um papel muito peculiar e frontal. No deve e haver da recuperação de direita, alguns destes estudantes e jovens trabalhadores que se juntavam entre si, escolheram trilhos mais difíceis de luta e aí pagaram demasiado caro, mas tão legítimos quanto os que escolheram as derivas do trabalho da «sobrevida», de expressões artísticas ou de cooperação de afinidades políticas e sociais, nunca esquecendo que a vigilância do estado nunca nos deixou totalmente em paz.

Hoje, a cidade pode gabar-se de comemorar de ano para ano o seu cortejo tão bárbaro, quanto entediante, a superioridade moral do vómito em alcatrão quente, sempre pelos idos de Maio. Os comerciantes de uma baixa decadente agradecem, a universidade lambe-se de entusiasmo, a polícia é condescendente com os futuros «dótores» e os hospitais mobilizam tendas e ambulâncias por todo o lado não vão eles sujar os corredores. A população com dinheiro suficiente consegue fugir para outros sítios menos poluentes e regressa, após uns dias, para o mar de lixo que entupiu as ruas. 

Autores: Ricardo Sousa e F. Carmichael
Ano: 2024
Pedidos à Editora Letra Livre