Talvez dos livros mais importantes de David Graeber, a seguir ao seu monumental «Debt, the first 5000 years» e «Trabalhos de Merda», que me pronunciarei em breve sobre ele. Dizem que já está esgotado e não me admira. É um livrinho de 100 páginas, mas bem elaborado e com uma síntese impecável sobre o que é o Anarquismo, hoje. Creio, não errar se disser que provavelmente ele escreveu-o para a galáxia marxista, mais do que para anarquistas. Por mim, apanhei-o a tempo e dou por mim a pensar que anarquistas haverá que talvez reajam com alguma surpresa e desconfiança o cada vez maior número de pessoas que se aproximam das suas teses e que leem com novo vigor as teses de Proudhon, Bakunine (não sabia que ele traduziu «O Capital» de Marx para russo!) e Kropotkine. O mais interessante é que o editor da «Prickly Paradigm Press» é o nosso conhecido Marshall Sahlins que escreveu o icónico «Âge de Pierre, âge d'abondance - l'économie des sociétés primitives». No seguimento da minha afirmação anterior também não será de estranhar as referência a Castoriadis, aos situacionistas, aos autónomos italianos e americanos e aos conselhistas, segundo ele os marxistas mais próximos à prática anarquista. Já não nos admira tanto a sua referência aos anarquistas e libertários como John Zerzan, um primitivista que editei na Deriva com o seu «Futuro Primitivo» e que esteve nas grandes assembleias de Seattle e ao recém-falecido Peter Lamborn Wilson autor das «Utopias Piratas», também editado pela Deriva. Com estes autores mantive uma correspondência bastante frutuosa. Gostei bastante deles e sendo este um fator subjetivo, vale o que vale, mas não queria deixar passar este facto em branco. Portanto, não tendo já essa possibilidade, peço que traduzam este livro para português, pela sua importância. Penso que a Antropologia cá da terra, e as pessoas que ainda não se recusam a ler e a pensar criticamente, só teriam a agradecer e não é com surpresa que vejo algumas afinidades com o livro de João Carlos Louçã no seu «Pensar a Utopia-Transformar a Realidade» principalmente na aproximação do marxismo ao anarquismo.
Neste livro, escrito em fragmentos e apresentando-nos pensamentos aparentemente desligados uns dos outros (como aliás toda a técnica da escrita fragmentária) reconhecemos uma sólida formação de antropólogo que não foge aos problemas vários do capitalismo e da construção de alternativas. São a construção desses paradigmas de liberdade individual e coletiva que nos leva a conhecer não só algumas práticas ditas de sociedades primitivas, mas criticá-las também. Provavelmente, teremos de pensar em alternativas ao capitalismo em moldes completamente novos. E é esse o desafio da democracia direta que nos traz David Graeber, além de outros desafios. Passa a pente fino a fixação ocidental (eis um conceito que deve acabar, o de «ocidental») na «democracia» ateniense e espartana como fossem o início de toda a governabilidade, quando existiam povos que usavam o consenso democrático muitos milhares de anos antes. A própria ideia de «representação» é de um dos maiores logros, ele chama-a de «trap» o que é uma palavra bem que acentua melhor o «nosso» sistema político.
Deixo para o fim o inteligente debate imaginário entre os sempre céticos de uma nova liberdade sem capitalismo, pode-se chamar anarquismo ou não, e aqueles que acreditam numa nova era alternativa, com bases sólidas de organização popular, autónoma, consensual, de vizinhança e de solidariedade comuns. Impossível? A História mostra-nos que não, mas omite as experiências livres que ocorreram desde há dois séculos e que ainda ocorrem em Chiapas, nas assembleas argentinas (após a sua derrocada económica) ou nas ZAD's autónomas por todo o lado na Europa, Estados Unidos ou Canadá. Opondo uma prática não-violenta à violência brutal do capitalismo (ele goza com o adjetivo «tardio») e a que já nos habituámos. Infelizmente. Até porque é cada vez mais letal.
É evidente que não se esgota aqui, nesta minha ficha de leitura, a riqueza das ideias de David Graeber e o pensamento crítico com que nos brinda em cada página. Que nos faz pensar. Mas é um desafio interessante ver que os antropólogos estarão na primeira fila do que ele chamaria de novos paradigmas, porque têm o saber necessário para desconstruir um sistema que nunca funcionou ou, se o fez, foi à custa de escravatura, genocídio de milhões de indivíduos, racismo, nacionalismos que levaram a guerras fratricidas, exploração desenfreada de recursos e criação de refugiados expulsos das suas terras ancestrais. E tudo isto através de estruturas militares, prisionais e burocráticas.
Ah...e Portugal e Espanha são referidos, tal como o sistema colonial francês e inglês. As monarquias ibéricas não eram muito mais complexas que as do Congo como se verificou nos seus primeiros contactos. Mas isto não é dito nas disciplinas académicas atuais. O que faz com que a História hoje se apresente como uma enorme omissão, quando não mentira estudada, como o fazem os media atuais, ou a sociologia que pretende «perceber» as «sociedades» confundidas propositadamente com os «estados».
Termino com uma provocação de Graeber: «por que razão há tantos académicos marxistas e só na antropologia é que encontramos um número assinalável de anarquistas?»