domingo, julho 17, 2022

«O Fim do Mundo Não Terá Acontecido», de Patrik Ourednik


Tradução: Júlio Henriques. Antígona, 2022
Depois de «Europeana», o checo Patrik Ourednik, parte, em 2017, para mais um livro sarcástico sobre o capitaloceno e as contradições por vezes kafkianas que são parte dele. O autor não poupa os dirigentes do mundo e muito menos o leitor, não fosse ele igualmente tradutor de Boris Vian, Rabelais, Alfred Jarry (olha que três!) e Raymond Queneau. Um livro de uma ironia tão fina que entra pelos nossos poros e por debaixo da porta, com grande prazer de leitura, mesmo sendo nós os que de um modo ou de outro deixam chegar as coisas até ao estado lamentável em que nos encontramos.

«O futuro já não é o que era.Você deve ter-se apercebido disso: o futuro já não é o que era. No passado, o futuro desenrolava-se principalmente segundo três modos de acção.
  • O mundo acabava e tudo começava do zero para um mundo idêntico, versão pessimista da maioria das crenças.
  • O mundo acabava num banho de sangue medonho e derradeiro, e sobrevinha então um mundo de felicidade, versão optimista de certas religiões.
  • O mundo nunca acabava e a felicidade, que era o seu fermento, ia aumentando até ao fim dos tempos, eles próprios indefinidamente renováveis, versão temerária dos fins da História.
Mas no início do século XXI, estas teorias estavam obsoletas. As previsões tinham evoluído. Todas as pessoas dotadas de um certo sentido das realidades concordavam num ponto: seja qual for o procedimento encarado, isto vai acabar mal. Ou num medonho banho de sangue seguido de coisa nenhuma, hipótese optimista. Ou em banhos de sangue um pouco por toda a parte seguidos de outros banhos de sangue um pouco por toda a parte, indefinidamente, até o universo se dilatar suficientemente para que a sua densidade atinja um valor infinito, provocando assim a destruição das galáxias e dos pobres-diabos que nelas habitam. Alguns observadores acrescentavam a isso um elemento complementar: o embrutecimento paralelo e até aqui inconcebível da Humanidade.» (pág.8)

Acresce dizer que Gaspard a personagem central do livro, embora Adolph, o boche, não lhe fique atrás, é um secretário importante do presidente mais estúpido dos EUA. O problema para o leitor é saber a qual se refere.

Também sobre o lema que a editora escolheu (e bem) para a contracapa é este pensamento de Ourednik: «O abuso da inteligência impede que se compreenda a estupidez e, por conseguinte, que a ela se pode resistir. Deste modo, a partir de um certo grau, a inteligência torna-se suficientemente estúpida para considerar a estupidez tão inteligente como ela própria.» (pág. 125)

Artigo publicado no suplemento Taboa Redonda do El Progreso de Lugo

domingo, julho 10, 2022

«Serotonina», de Michel Houllebecq

 

Tradução de Valério Romão
Alfaguara, 2019
«Deus, na verdade, ocupa-se de nós, pensa em nós a cada instante, e por vezes dá-nos instruções muito precisas. Estes arrebatamentos de amor que nos apertam o peito até nos deixarem sem ar, estas iluminações, estes êxtases, inexplicáveis do ponto de vista da nossa natureza biológica, da nossa condição de simples primatas, são sinais extremamente claros.
    E hoje percebo o ponto de vista de Cristo, o seu reiterado desespero ante o endurecimento dos corações: dispõem de todos os sinais e não os têm em consideração. É mesmo necessário dar a minha vida por estes miseráveis, ainda por cima? É necessário ser explícito a esse ponto?
    Dir-se-ia que sim.»

Michel Houllebecq, Serotonina, 2019, pág.279

sexta-feira, julho 01, 2022

«Realismo Capitalista - Não haverá alternativa?», de Mark Fisher

 

Uma síntese muito bem feita, mas não esperem um calhamaço sobre as diversas teorias anticapitalistas, embora nos ajude a ter pistas reais de alternativa à catástrofe capitalista a que o autor acrescenta o termo «tardio». Sendo ou não tardio, (Engels previa a sua morte iminente em cartas a Marx desde meados do século XIX) ele vai impondo-se subjectivamente, inconscientemente em nós, entrando-nos no corpo, na mente, reduzindo a família nuclear numa espécie de indivíduos desligados entre si, mas ligados às correntes digitais. O público vê-se cada vez mais refém do privado. Mas que privado? Que corporações? Que rostos os do capitalismo? Entretanto este desconhecimento, o esconderijo político e económico a que se remeteu, torna-o soturno, negro, depressivo, perigoso no plano da degenerescência planetária. Mark Fisher apresenta-nos o «Realismo Capitalista» como contraponto ao que foi o «Realismo Socialista» a que chama estalinista, preferindo eu o termo brejnevista, porque aquele tem mais a ver com a estagnação, embora o capitalismo se tenha tornado verdadeiramente repressor, intolerante, concentracionário a um ponto que era impensável, mesmo para os filósofos dos anos 70 do séc. XX que o previram. Um «capitalismo estalinista»? Porque não? Kafkiano? Burocrático? Tornam-se cada vez mais claras estas hipóteses quando o «neoliberalismo» se alia ao «neoconservadorismo» como se vê nos EUA, Brasil ou mesmo na Grã-Bretanha. Fisher recorre a exemplos claros disto mesmo. Perante a desordem liberal a ordem evangélica precisa de colocar o homem em presença de um sentido, uma fraude que o convença que está aqui para trabalhar, consumir, humilhar o outro, ganhar o seu primeiro milhão, coisa que nunca vai acontecer. O Estado e os dinheiros públicos, esses, rapinam-se-se para as bolhas bancárias liberais como em 2008 e transforma-se numa instituição vocacionada para o policial e para travar guerras.

Um dia, já há uns anos, estava eu a falar informalmente com um director de uma escola onde era professor e onde as coisas não funcionavam pelo melhor. Ou seja: não funcionavam mesmo. O director não parava de se queixar que não tinha apoio do Estado nem dos sindicatos. Que ele, nas instituições intermédias das escolas deixava tudo, tudinho, plasmado em atas em protesto. Foi aqui que me veio à memória o período de «estagnação» da era Brejnev. Lembrei-lhe isso mesmo e ele conhecia-a bem visto que na sua juventude tinha sido comunista. Perguntei-lhe como eram as atas, os relatórios, os documentos, as folhas de cálculo, as declarações e requerimentos mil, relatórios de autoavaliação docente e não-docente com que as escolas eram atafulhadas pela burocracia. Chegámos rapidamente à conclusão de que tudo corria pelo melhor nessas milhares de folhas e relatórios digitais: as estratégias davam certo, os alunos tinham o necessário apoio pedagógico, a avaliação era claramente positiva, os professores estavam felizes e encontravam-se doentes por tempo indeterminado por causa da coluna, não por depressões, as estruturas físicas das escolas estavam óptimas, os computadores eram quase o ratio de um por aluno e trabalhavam bem. Os alunos aborreciam-se, não largavam os telemóveis, mas a motivação era um êxito. O dinheiro era pouco, mas uma boa gestão faria dobrá-lo eficientemente. Lembrei-o que a realidade era diferente, muito diferente. Ele encolheu os ombros e disse que tinha de seguir o guião da inspecção que esteve lá somente meio-dia num ano inteiro e que desenvolveu um relatório de 30 páginas. É isto o «Realismo Capitalista» que longe ainda do seu estertor confunde os desejos com a verdadeira realidade e que Fischer reproduz tão bem neste pequeno livro. Não fossem as taras que o capitalismo neoliberal e neoconservador cria e teríamos vontade de rir. Mas até o divertimento é ele que guia. O pensamento crítico, não. Como diz o autor no fim do seu livro «o antagonismo dos mineiros de Tatcher foram substituídos pelo sentimentalismo anódino e vagamente protestativo do Live Aid». Até nos levantarmos em peso por exaustão do consumismo e não termos nada a perder contra o capitalismo a não ser as nossas grilhetas. É preciso é identificar quais são. 

Leiamos Mark Fisher: «Recuperar uma verdadeira vontade política significa antes de mais aceitar a nossa inserção no plano do desejo na trituradora desapiedada do Capital. O que tem sido renegado na abjecção do mal e da ignorância nos Outros fantasmáticos é a nossa própria cumplicidade com as redes planetárias de opressão. O que convém reter é que o capitalismo é uma estrutura hiperabstracta e que nada seria sem a nossa cooperação. A descrição mais gótica do Capital é também a mais exacta. O capital é um parasita abstracto, um vampiro insaciável e um criador de mortos-vivos; porém, a carne viva que ele converte em mão-de-obra morta é a nossa, e os mortos-vivos que ele cria somos nós. Há um sentido em que simplesmente se comprova que a elite política é de facto a nossa serva; o miserável serviço que nos presta é lavar a nossa libido, reapresentar obsequiosamente diante de nós os nossos desejos renegados como se nada tivessem que ver connosco.» (pág.29)

«O sistema através do qual a escola é financiada significa que ela não se pode literalmente dar ao luxo de excluir alunos, mesmo que queira. Os recursos são destinados às escolas com base no sucesso alcançado com base no sucesso no cumprimento das metas de aproveitamento, assiduidade e retenção de alunos. Esta conjugação entre imperativos de mercado e «metas» burocraticamente fixadas é típica das iniciativas «estalinistas de mercado» que actualmente governam os serviços públicos. A ausência de um sistema disciplinar eficaz não foi, para não dizer mais, compensada com um aumento da motivação própria dos alunos. Os estudantes têm consciência de que se passarem semanas a fio sem irem às aulas, e/ou se não produzirem algum trabalho, não terão de enfrentar nenhuma sanção significativa. A reacção típica que têm perante tal liberdade é não levarem a cabo os projectos, preferindo entregar-se à lassidão hedónica (ou anedónica): a suave nracose, o esquecimento reconfortante da Playstation, a televisão noite fora e a marijuana.» (pág.42)

Edições VS - Vasco Santos

2ª edição, 2022