Hoje, no início de mais um ano letivo, deparamo-nos com a aridez, a estupidez, as leis circulares, o faz-de-conta de uma impossível coerência concetual das mesmas propostas todos os anos repetidas, até ao cansaço total dos professores que sabem melhor do que ninguém do que a casa gasta. A falta de propostas ministeriais do edifício educativo esconde-se atrás da opacidade de palavras como «reformulação», da «reconfiguração», da «revisão» ou da «reavaliação» de coisa alguma. Tudo fica na mesma. E aqueles que apontam isto mesmo, são apelidados de «conservadores» de «atreitos à mudança» como se a resistência a uma ridícula inovação estivesse connosco no circo em que se tornou a educação. Diz Debord, na sua «Sociedade do Espectáculo» que num mundo ao contrário, o verdadeiro é um momento do falso. Nós vivemos num mundo invertido. Mas porque começo eu a falar de educação quando quero falar da viagem dos zapatistas?
Os zapatistas chegaram à Europa e são poucas as publicações e os grupos anticapitalistas que tentam divulgar este acontecimento que eu apelidaria de histórico não fosse a proximidade da data em que os factos tiveram, têm e terão lugar: 2021. Cedo para qualquer análise séria. Esta data escolhida quer assinalar a chegada dos europeus à América com as consequências que conhecemos. Honra seja feita ao «Jornal Mapa» e à revista «Flauta de Luz» que nos dão e darão a conhecer pormenorizadamente o fim político a que se destina esta viagem marítima dos zapatistas e do EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional) à Europa.
Falemos então de educação zapatista pela descrição de quem lá esteve e publicada pela já citada «Flauta de Luz»: Jérôme Baschet cujo «La Rébellion zapatiste» de 2019 foi traduzido em trecho importante por Júlio Henriques: a rebelião armada de milhares de homens e mulheres que teve lugar em Chiapas a 1 de janeiro de 1994 exigia mais liberdade, democracia e justiça. Hoje, são 31 os estados mexicanos nas mãos dos zapatistas ou sobre a sua influência direta, não obstante as perseguições e repressão a que estão sujeitos.
A mobilização pela educação foi das áreas mais abraçadas e desenvolvidas pelos zapatistas e pelo EZLN, logo atrás da Reforma Agrária. Aliás, isto não é novo nos movimentos rebeldes da América do Sul e em África. A educação é fundamental para a consolidação e resistência contra o capitalismo. A organização que deu lugar à escola zapatista é que nos deve chamar à atenção:
1. Logo em 1994 foram construídas centenas de escolas por Chiapas e estados mexicanos limítrofes. Primeiro as escolas primárias, mas em 2003 encontrava-se a funcionar uma secundária. Em Oventic chegou-se a iniciar a construção de uma escola secundária e só depois a primária, o que determina bem a autonomia dos «conselhos do bom governo» de cada região zapatista.
2. Em 2008, nas cinco principais zonas do EZLN, funcionavam cerca de 500 escolas, existindo 1300 promotores (não existem «professores», como tais ou como nós os entendemos na Europa) e 16 000 alunos. Em 2013 só na zona citada de Los Altos em Oventic, havia 157 escolas primárias, 496 promotores e 4886 alunos. Isto demonstra bem o nível de esforço coletivo de todo o movimento em torno da educação.
3. O papel do promotor é encarado como um papel prestado à comunidade e implica que esta se compromete a ajudar os promotores ou promotoras das suas necessidades, fornecendo-lhes produtos ou ajudando a cultivar a sua «finca» ou construindo-lhe a casa. Não há salários em dinheiro para os promotores, o que não quer dizer que ele tenha desaparecido totalmente. Nem poderia, como explica o artigo mais adiante.
4. É a assembleia comunitária que juntamente com o promotor, membros do conselho e os pais debatem as disciplinas, o teor do projeto educativo ou que estabelecem um calendário/horário para substituir os auxiliares, visto que estes não existem. Os alunos e os promotores tratam de grande parte da sua escola. Portanto, é na assembleia comunitária que os promotores e a comunidade definem os seus compromissos coletivos e que são discutidas as orientações educativas. A educação torna-se assim uma questão de todos.
5. A educação zapatista não está, contudo, isenta da influência da educação tradicional, como é evidente. O que se tem verificado é uma pressão dos pais para que o modelo da escola preexistente continue a funcionar, mas agora com um carácter verdadeiramente prático e utilitário. Paradoxalmente, este processo implicou uma «dupla dimensão de reprodução e de reformulação» e levou a prática zapatista «a uma profunda subversão do modelo escolar dominante» (J.B. op.cit.)
6. Pelo que ficamos a perceber (e é tão óbvio entendê-lo) é que o ensino escolar zapatista está em grande parte pensado a partir da realidade concreta da vida comunitária como o conhecimento do meio ambiente que o rodeia, natural, local e do planeta, da saúde preventiva e ambulatória, valores comunitários, problemas concretos que obrigam ao uso da matemática, à história dos povos e da luta zapatista, rompendo com o monopólio do saber instituído e dado como absoluto e inquestionável.
7. Nem sempre as coisas correm bem. Os promotores e as promotoras são quase sempre muito jovens e o seu entusiasmo é muito, mas depressa se deparam com dificuldades várias como o suprimento de algumas necessidades básicas que as comunidades tentam debelar a todo o custo, mas muitas vezes sem sucesso, o que os obriga a abandonar esses cargos sendo substituídos por outros mais jovens. Porém, isto nem sempre é mau. Em primeiro lugar, o primeiro promotor/a nunca consegue abandonar totalmente a sua «escuelita», enquanto que os segundos ou terceiros se vinculam com interesse aos alunos aproveitando o trabalho já realizado, renovando métodos e matérias. Ou seja, a rotatividade a que obriga a diversidade de tarefas na comunidade pode ter sido um fator positivo na própria inovação dos métodos de ensino e de educação anticapitalista e solidária.
Que a experiência zapatista embrionária obrigue a uma reflexão séria de como a educação pode e deve ser uma alternativa cada vez mais desejada, quer pelo cansaço institucionalizado por incompetentes muito pouco, ou quase nada, democráticos. Esses enchem a boca sempre que se fala em democracia, em educação, ou cidadania «exigindo» um capitalismo verde que nos levará à derrocada total sem retorno se não construirmos urgentemente alternativas ambientais e de uma outra ideia de produção que é urgente debater na Europa. Uma outra educação deve ser abraçada e os indígenas de Chiapas podem dar-nos lições dessa ligação ancestral entre o Homem e o Planeta- Ouçamo-los.
António Luís Catarino