Barranco de Cegos, de Alves Redol, é uma edição da Caminho, 13ª ed. Editorial Caminho/Leya
«Chicote e açúcar!», lema de Diogo Relvas, personagem principal de «Barranco de Cegos», latifundiário do Ribatejo cujas terras se alargam até muito ao sul do Tejo, neto de um lavrador que enriqueceu com a Guerra Civil de 1832-34 tomando o partido dos liberais e aproveitando-se do fim dos morgadios e terras da igreja e dos conventos. O pai de Diogo Relvas também ele de ténues sinais liberais comprou ao desbarato terras da Companhia das Lezírias levadas a cabo pela Regeneração aumentando o pecúlio já enorme da família e de Diogo. Homem bruto, como convém, a qualquer latifundiário que se preze, preocupa-o o liberalismo e abraça de mansinho o absolutismo bem descrito nas cabeças embalsamadas dos dois cavalos que mantém na sua sala: um cavalgou-o D. Pedro, o outro, o mano Miguel.
Mas a luta é outra em todo a obra de Alves Redol neste excepcional «Barranco de Cegos». O embate duro é entre a lavoura e a indústria nascente como seu rol de corrupção, de acções ganhas por especulação, por entendimentos políticos em Lisboa (uma babilónia de pecados que ele próprio pratica quando lá se desloca amiúde), por escândalos bancários em convivência real, por negociatas em torno dos caminhos de ferro que esventram o país de lés a lés e, para mais, o apetite da Inglaterra e Alemanha pelas colónias. «Ainda nos calha outros brasis!» explode Diogo Relvas nas suas arengas na Sociedade da Lavoura perante os que o aplaudem à frente, mas que vão negociando, em segredo, acções na indústria florescente e apoiada por fundos bancários. A agricultura já não pertence a este país. O que vier se verá!
Entre crises políticas e financeiras sucessivas como o ultimato inglês de 1890, a revolta republicana do 31 de Janeiro de 1891, a bancarrota de 1891/92, Diogo Relvas pensa que a monarquia enfraquece a cada dia que passa. E tem razão até 1908 quando D. Carlos e Luís Filipe são assassinados no Rossio. Não que o choque muito, porque já virado para o futuro, culpando antes o ditador João Franco por brandura e cedendo aos republicanos. Para ele a permanência da monarquia é uma quimera perdida. Lúcido (e como Diogo Relvas convoca a lucidez sempre para si) vê a solução na ditadura.
Não creio que Alves Redol tenha grande amor pelos republicanos. Muito menos por monárquicos em decadência exposta. Pelo menos não o demonstra neste livro. Já com a Associação dos Valadores pressente-se a sua simpatia por um povo que fez crescer os frutos de uma terra árida e pedregosa que Diogo Relvas os presenteou por três gerações (a enfiteuse ibérica que substituiu o feudalismo europeu?). Aí, a sua raiva e violência vem ao de cima com a capacidade do povo em organizar-se e fazer valer os seus direitos. Ameaça, manda prender, manda espancar matar. O mando dos latifundiários retratado brutalmente por Redol.
Ao mesmo tempo que o chicote se sobrepõe ao açúcar de Diogo Relvas e clama por uma ditadura que há-de vir, graças aos céus e aos lúcidos como ele, a vida afasta todos os seus - os da família e os apaniguados - e a loucura do neto que lhe sucede acompanha a comédia da sua morte escondida como aos cavalos dos reais irmãos desavindos em guerra civil de outrora: empalharam-no num embalsamamento a que a natureza lhe deu o fim com luz e vento: reduziu-o a pó.
O povo português foi durante muito tempo tratado a «chicote e açúcar» tal como no Brasil escravista ganhava a «porrada e feijoada». Não sei se haverá alguma percepção geral desse facto que durou séculos de infâmias, violências, humilhações e dominações sexuais, em que o estupro e a violação de mulheres era uma constante pelos mais poderosos. Também não sei se haverá vontade política para que, através da escola e dos responsáveis da cultura deste país, o relembrem ou sequer lhe dêem a visibilidade que, na obra de Redol (e conheço-a pouco) é mais que merecida. E não me venham com o rótulo estafado e redutor do neo-realismo, embora este tenha existido com invulgar fulgor numa terra de iletrados e abraçado pelos subjugados. Sabe-se porquê: era a resistência. Mas isto é pura literatura que deve ser lida e relida.
António Luís Catarino