Editado em 2017, pela Letra Livre (cada vez melhor) e pela Associação Galega da Língua de Santiago de Compostela, Através, Paula Godinho consolida-se como uma antropóloga de referência em Portugal e provavelmente para lá da nossa raia ou da linha ténue que nos separa da Europa. Não percam este livro.
O livro é formado por uma Introdução, Lides de Rotina (sobre as trabalhadoras têxteis de Verim, na Galiza), Na Penumbra do Poder (sobre o raiano e comunal Couto Misto ou Mixto, como queiram), Ecos Teimosos (sobre o processo de Reforma Agrária no Couço) e um Tout Ça N'Empêche Pas, Nicolas (este capítulo mais explicativo e da metodologia da Antropologia)
Li-o com crescente interesse, sublinhando aqui e ali partes que me pareceram importantes de referir já que, por coincidência conheço todos os locais que Paula Godinho nomeia. A saber, Verim na Galiza quando editava autores galegos na Deriva e passeava por lá com frequência, o Couço onde me desloquei duas vezes em plena Revolução (PREC com muito orgulho) e o Couto Misto pela mesma razão de Verim. Não sei se é da idade ou não, mas as coisas dão agora para me emocionar. O «Futuro é para Sempre» tem esse condão de me «pregar» na leitura e ver-me a mim com 17 anos no Movimento Alfa, lá referido aliás, em Toulões concelho de Idanha-a-Nova (cujas ocupações são enumeradas em Castelo Branco) e participar na ocupação das terras dos Almeida Garrett e dos Marrocos! Ocupou-se igualmente a casa soberba da herdade e morada dos proprietários absentistas. Vi crescer a creche no 1º andar dessa casa e conseguimos dar aulas de alfabetização na sala de jantar ao lado com candeeiros a petróleo. Também vi, infelizmente, o que a Paula Godinho conta no capítulo sobre as derrotas da RA no que respeita à iminente entrega da UCP aos antigos patrões, com a anuência em contra-corrente do técnico do IRA e algum mal-estar interno com os salários dos operários agrícolas. «Porque o contabilista e o tratorista teriam de ganhar o mesmo, se não trabalhavam na terra?». Coisas assim. Com uma grande diferença. A autora esteve anos estudando e recolhendo provas escritas e orais no terreno acompanhando todos os momentos intensos e significativos de culturas próprias urbanas e rurais sem a irritante imparcialidade de alguns. Paula Godinho põe-se ao lado dos subalternos explorados em várias redes e intensidade pelas classes dominantes e pelo poder.
Logo na Introdução, Paula Godinho diz ao que vem citando Agier: «Vivemos um longo momento de incerteza, com as vidas a tornarem-se precárias por mais tempo e com os seres humanos a habituarem-se a materialidades provisórias, a mobilidades sem ancoramento e sem direção, com 'inovações' constantemente exigidas, nas quais o passado e o futuro são ignorados». Quanto á exigência de inovação lembro-me de memória de uma frase de Debord e o quanto vale esse objetivo, «Quando o patrão exige inovação, o escravo honesto proclama de imediato a sua própria modernidade!». A partir daqui o leitor não deve voltar atrás. Mais a mais com outra citação que Paula Godinho vai buscar a David Harvey «O capitalismo nunca cairá por si. Terá de ser empurrado. A acumulação de capital nunca parará. Terá de ser travada. A classe capitalista nunca abdicará do seu poder. Teremos de lho retirar». Aqui o leitor não pode colocar o livro de lado. Se o fizer vá então ler o Henrique Raposo e o Neves. Ainda é nesta introdução que a autora nos dá uma visão mais clara da metodologia que utiliza quer em trabalho de campo, quer na explanação teórica, com profusão de nomes e referência bibliográficas que nos obrigam a nós, leitores desprevenidos, a pesquisar sobre a obra ou obras deste ou daquele autor citado.
Em Verim explora-se o sobretrabalho, mal pago e sem direitos das costureiras. A lógica do patronato é a deslocalização, falências fraudulentas e salários baixos. Os patrões, posso eu dizê-lo, embora no livro esteja ausente a referência a Zara e outras/os modistas de renome mundial. Voltou-se à exploração do século XIX e com o medo à mistura. Nenhuma costureira quis dar o seu nome nas entrevistas dadas, mas apontando irregularidades várias e violências no que se refere ao trabalho repetitivo e de pura exaustão física quer na oficina, quer em casa (aqui ainda é pior, porque se rompem laços familiares e trabalha-se quase as 24 horas do dia). Caso exemplar testemunhado por vários autores que conheci, e referido por Paula Godinho, é o facto de na Galiza não ter existido a guerra civil de 36/39 mas antes os paseos onde se fuzilavam os suspeitos pela calada da noite. Assim, o poder reivindicativo foi sempre fraco o que levou, durante o franquismo ao abuso das classes dominantes espanholas. Hoje isso aumentou e a autora lembra a deslocalização para o Nepal e os desastres mortíferos de Dacca, sem que nenhuma empresa têxtil multinacional se tenha responsabilizados pelas centenas de vítimas. É a deslocalização...
O Couto Misto já é mítico.. A resistência silenciosa quase aquiescente da população das três aldeias veio dos confins do feudalismo. O comunalismo era praticado às claras, não tinham juízes de fora, não cumpriam serviço militar, eram contrabandistas e era uma zona de refúgio ou zomia (James C. Scott) para os perseguidos pelo poder. Gente boa. Mas extremamente maltratada pelos governos do Estado Espanhol e Português. Paradoxo: os liberais que em 1864 acabaram com o Couto Misto, dividindo-o pelos dois estados, com o argumento que as linhas de fronteira teriam de ser claras, ou melhor, de traços grossos em vez de finos, e acabar com o que restava de vestígios medievais e do enclave que o ligava a Portugal por uma estrada privilegiada. O liberalismo vinha aí com o sempiterno «progresso». Para não me alongar: li das melhores descrições históricas, sociológicas e antropológicas no tratamento do Couto Misto. E no que se tornou hoje.
Quanto à Reforma Agrária, como ela é descrita e contada, não vale a pena alongar-me. Estamos lá. A ver as pessoas. E a ouvi-las. Como num filme.
Quanto à Reforma Agrária, como ela é descrita e contada, não vale a pena alongar-me. Estamos lá. A ver as pessoas. E a ouvi-las. Como num filme.
António Luís Catarino
26 de fevereiro de 2020