sexta-feira, fevereiro 21, 2020

Dois livros de Herta Müller


Creio que já disse por aqui que não sigo os prémios Nobel só porque o são. Alguns são mesmo maus e evito falar deles. Não é o caso de Herta Müller que o ganhou em 2009 e de quem li dois livros. «Tudo o que tenho trago comigo» é mesmo avassalador não só pelo estilo imprimido que capta a atenção contínua do leitor e que se repete em «Hoje preferia não me ter encontrado» título mais bem escolhido que o francês «La convocation».

«Tudo o que tenho trago comigo» é uma história verdadeira mas pouco conhecida entre nós, ocidentais ganhadores de guerras e de vitórias várias e por vezes vãs contra outros povos. Adiante. Pouco conhecemos do pós-45 para a minoria alemã da Roménia (mas pressente-se o mesmo de outras minorias alemãs em países do Leste), donde é oriunda Herta Müller. Lê-se na página 14 a ironia fina da sua condição no pensamento da personagem central da narrativa, : «A minha mãe e especialmente o meu pai acreditavam, como todos os alemães na cidade de província, na beleza das tranças louras e das meias brancas até ao joelho. No quadrado negro do bigode de Hitler e em nós, saxónios da Transilvânia, que éramos membros da ariana raça. O meu segredo era já, sob o mero ponto de vista físico, a maior monstruosidade. E, sendo romeno, acrescenta-lhe ainda crime contra a raça». Oskar Pastior será um jovem membro de uma família alemã que terá de reconstruir a URSS devastada pela guerra. Aliás, todas as famílias das minorias alemãs terão de entregar um membro (geralmente o mais novo e com mais força) para essa mesma reconstrução. Foi o que aconteceu a Oskar que passa 5 dos seus anos num campo de trabalho. Da descrição desse campo no meio de nada, passa-se fome e como a fome é descrita! O «Anjo da Fome» acompanha-o sempre nesses 5 anos e nem sempre é bom e lhe dá bons conselhos. No campo vive-se o tédio dos gestos repetidos «Tenho medo que se morra de tédio quando se está morto» diz Bea Zakel, um amigo. Sobreviveu e encontrou-se com Herta Müller, 60 anos depois, onde nem a família já o quis: «Ninguém me quer cá e eu de forma alguma posso partir» ou ainda esta declaração confrangedora, «Se, nesta vida, me quisessem de novo deportar, uma coisa eu saberia: há coisas primeiras que já querem as segundas, mesmo contra o nosso querer. O que é que me compele a manter essas ligações. Porque quero eu, à noite, ter direito à minha miséria. Porque não consigo ser livre. Porque obrigo o campo de trabalho a obedecer-me. Saudades de casa. Como se eu precisasse.»

Quanto ao segundo livro aqui citado de Herta Müller «Hoje preferia não me ter encontrado» é uma descrição realista da Roménia de Ceausescu. Um livro abafado, preso, sufocado pela ideia da fuga e da convocação iminente da Securitate. Mas houve a transgressão da mulher a quem a escritora dá vida. Na fábrica de confeções onde trabalhava, em jeito de brincadeira ou talvez algo mais sério, enviava nos bolsos das calças para onde eram exportadas para Itália pequenos papéis com o seu nome e morada na esperança de um italiano a procurar e levá-la. As intimações tornaram-se regulares e é neste clima que tudo se passa. O medo, a superstição contra os medos, os temores à noite, a transpiração contínua antes de cada interrogatório. Além disso os dois casamentos falhados. O primeiro marido, operário como ela, foi o seu denunciante à polícia; o segundo, alcoólico tratava de espiar os outros. Talvez a ela própria. O romance termina rapidamente com a descida abrupta do elétrico em que viajava. Cortou com tudo, ao que parece. Mas como se pode cortar com tudo numa sociedade que ela própria cortou com os laços entre as pessoas?

António Luís Catarino
Coimbra, 21 de fevereiro de 2020