sábado, dezembro 29, 2012

Onde se fala da Balsa da Medusa

The Raft of the Medusa, de Gericault
Deparei-me, na leitura de um livro elementar para a compreensão da actual crise do capitalismo, com a seguinte frase de Anselm Jappe: «(...)O equivalente do fetichismo da mercadoria na vida psíquica individual é o narcisismo. Aqui, o termo não designa apenas uma adoração do próprio corpo ou da própria pessoa. Trata-se de uma grave patologia, bem conhecida na psicanálise: uma pessoa adulta conserva a estrutura psíquica dos primeiríssimos anos da sua infância, quando ainda não havia distinção entre o eu e o mundo. Qualquer objecto exterior é vivido pelo narcisista como uma projecção do seu próprio eu, e, em contrapartida, esse eu permanece terrivelmente pobre devido à sua incapacidade para se enriquecer através de relações autênticas com objectos exteriores – com efeito, para o conseguir, o sujeito deveria primeiro conhecer a autonomia do mundo exterior e a sua própria dependência em relação a ele
Este livro, Sobre a Balsa da Medusa (Antígona, 2012), levanta a questão importante de saber qual o papel da «arte» - já em decomposição desde o início do século XX - na crise do capitalismo quando um dos maiores crimes contra a Humanidade foi cometido por este: a saber, o fim do próprio Homem e das suas características essenciais para com o mundo envolvente. O capitalismo, com a sua fúria reguladora de todos os aspetos da vida, retirou a capacidade de perceber o Mundo desde a modernidade. Coincidência*: Descartes ao defender o seu Penso logo existo, só criou essa falsa relação com o Mundo. Separou o Eu de tudo o que o envolve, o que criou a tal patologia grave de que fala Jappe e que Freud desconheceu por ainda não ser tão clara essa separação no século XIX. Se a arte morreu foi porque foi incapaz de entender esta separação material e todas as pistas que foram desenhadas para a ultrapassar foram votadas ao fracasso na arte contemporânea (o dadaísmo e o surrealismo são técnicas, tal como o abstracionismo e infelizmente não foram seguidos).
Esta, e outras razões, são essenciais para perceber as escolhas da Deriva na poesia: trata-se de, através da leitura do mundo interior ou exterior, tocar, reduzir essa separação entre o eu e o Mundo material, levando o Homem a procurar essa totalidade. Não é tarefa fácil, mas é um caminho a seguir, seguramente.

*Coincidência ainda maior: ao ler este livro de Anselm Jappe, li, em simultâneo, um artigo de Pedro Eiras na Textos e Pretextos, nº17, que comparava esta frase de Descartes a uma outra a que se opunha Herberto Hélder «Portanto, cada vez menos sei se posso ser, porque (nas circunstâncias) o ‘penso logo existo’ cai pela base, digamos da própria cabeça.», em Photomaton & Vox.