The Raft of the Medusa, de Gericault |
Deparei-me, na leitura de um livro elementar para a compreensão
da actual crise do capitalismo, com a seguinte frase de Anselm Jappe: «(...)O
equivalente do fetichismo da mercadoria na vida psíquica individual é o
narcisismo. Aqui, o termo não designa apenas uma adoração do próprio corpo ou
da própria pessoa. Trata-se de uma grave patologia, bem conhecida na
psicanálise: uma pessoa adulta conserva a estrutura psíquica dos primeiríssimos
anos da sua infância, quando ainda não havia distinção entre o eu e o mundo.
Qualquer objecto exterior é vivido pelo narcisista como uma projecção do seu
próprio eu, e, em contrapartida, esse eu permanece terrivelmente pobre devido à
sua incapacidade para se enriquecer através de relações autênticas com objectos
exteriores – com efeito, para o conseguir, o sujeito deveria primeiro conhecer
a autonomia do mundo exterior e a sua própria dependência em relação a ele.»
Este livro, Sobre a Balsa da Medusa (Antígona, 2012),
levanta a questão importante de saber qual o papel da «arte» - já em decomposição
desde o início do século XX - na crise do capitalismo quando um dos maiores
crimes contra a Humanidade foi cometido por este: a saber, o fim do próprio Homem e das
suas características essenciais para com o mundo envolvente. O capitalismo, com
a sua fúria reguladora de todos os aspetos da vida, retirou a capacidade de
perceber o Mundo desde a modernidade. Coincidência*: Descartes ao defender o
seu Penso logo existo, só criou essa falsa relação com o Mundo. Separou o Eu de
tudo o que o envolve, o que criou a tal patologia grave de que fala Jappe e que Freud desconheceu por ainda não ser tão clara essa separação no século XIX. Se
a arte morreu foi porque foi incapaz de entender esta separação material e
todas as pistas que foram desenhadas para a ultrapassar foram votadas ao fracasso na arte
contemporânea (o dadaísmo e o surrealismo são técnicas, tal como o abstracionismo e
infelizmente não foram seguidos).
Esta, e outras razões, são essenciais para perceber as
escolhas da Deriva na poesia: trata-se de, através da leitura do mundo interior
ou exterior, tocar, reduzir essa separação entre o eu e o Mundo material,
levando o Homem a procurar essa totalidade. Não é tarefa fácil, mas é um
caminho a seguir, seguramente.
*Coincidência ainda maior: ao ler este livro de Anselm Jappe,
li, em simultâneo, um artigo de Pedro Eiras na Textos e Pretextos, nº17, que
comparava esta frase de Descartes a uma outra a que se opunha Herberto Hélder
«Portanto, cada vez menos sei se posso ser, porque (nas circunstâncias) o ‘penso
logo existo’ cai pela base, digamos da própria cabeça.», em Photomaton &
Vox.