D. Quixote, 1994. Tradução de Ana Cristina Costa
Há escritores assim, que nunca os abandonamos e temos razões de sobra para o fazer. «Um Circo que Passa», de Patrick Modiano é um livro em suspensão, daqueles em que assoma um mistério em cada página, obrigando-nos a um diálogo constante com as situações e com as personagens que as criam na esperança, por vezes desconcertante, de as adivinharmos ou aproximarmo-nos da lógica interior de dois jovens que deambulam por uma Paris dos finais dos 50, início dos 60. Ela, de 21 anos, ele um adolescente considerado ainda menor. Não se sabe por que razão, logo no início, são interrogados pela polícia, nem como, mais tarde, se deixam envolver no que parece ser um crime. É uma cidade que nada terá de parecido com a Paris de hoje, também ela invadida por turistas, por preços impraticáveis e por vigilância electrónica, mas que nos provoca uma nostalgia, talvez contraditória, onde encontrávamos quer o perigo, quer a surpresa do encontro inesperado, ou os cafés a abarrotar de gente, o cheiro a café torrado, a profusão de bebidas alcoólicas e fumo de tabaco a rodos. A deriva destes jovens é feita aleatoriamente, com o objectivo último de chegar a Roma, embora nunca saindo de Paris. E, sim, apaixonam-se em quatro dias intensos (quem nunca?), descritos por Modiano com palavras de filigrana. O fim poderá não ser o esperado pelo leitor, mas acreditem que as pessoas nesta época eram muito menos perigosas do que as de hoje, mesmo perpetrando os acostumados crimes de uma grande cidade. Pelo menos os seus habitantes não estavam cercados por uma polícia cada vez mais brutal e máfias de crime organizado em que tudo vale. Tanto uns como outros não lhes conhecemos nem a cara e nem os nomes. Acossados, para lembrar o filme de Godard, Gisèle e Jean viveram a sua vida, deambulando e seguindo os seus instintos, tendo à sua mercê um destino que ainda lhes permitem seguir como uma segunda possibilidade.
Não pertenço e creio que nunca pertencerei a movimentos como «Mais vida, menos écrans». Por mim, trata-se de uma guerra perdida. Mas uma parte da nostalgia provocada pela leitura deste livro chegou-me através da ausência de qualquer tipo de comunicação que não fosse o telefone público e o jornal. Também o automóvel, claro. A esplanada e o café onde a conversa poderia aparecer e fluir com desconhecidos. Hoje o mundo é muito mais perigoso, porque previsível, demasiado previsível pela impossibilidade de comunicação, de saber do outro que está ao nosso lado colado a um écran, teclando, sorrindo ou chorando para um avatar, falando para si próprio na rua com uns phones pendurados. A deriva é sempre feita entre locais predestinados, contando-se os passos medidos em gps. Durante a leitura de «Um Circo que Passa» não deixei de achar estranho lembrar-me que a abertura e ignição de um automóvel só poderia ser efectuada simplesmente com uma chave de aço. Uma pessoa, termina a leitura de um livro de Patrick Modiano e sente que alguma coisa se perdeu nas interrelações humanas trocando-as pela fraude tecnológica das «comunicações digitais».