Asa, 2023. Tradução de Francisco Agarez
Este foi o último livro de Paul Auster, o que não quer dizer que seja uma afirmação taxativa. Com Auster nunca se sabe e tendo falecido em 2024, com um cancro, pode ter tido tempo de nos apanhar com mais surpresas tenham elas a forma que tiverem. Imaginem mesmo a existência póstuma de um nova obra. Até porque «Baumgartner» é propositadamente um livro algo incompleto como toda a nossa vida o é. E trata-se mesmo de uma existência, a dele, Paul Auster, cujo alter ego é o de Baumgartner, um professor universitário que sente a finitude física e mental, o fim próximo, desnovelando todas as memórias que possa ainda ter de uma mulher ausente por um desastre estúpido e que teima em estar sempre presente. A rotina vai salvando-o e as expectativas são ainda construídas tendo quase a certeza de que não passarão disso mesmo. Os entusiasmos têm tanto de efémeros como de inverosímeis, mas mesmo assim constrói-os como se fossem as únicas tábuas de salvação a existirem.
Escritos sobre a finitude lembro-me logo, sem procurar muito, de Séneca, de Schopenhauer, de Saramago, de Levi, de Günter Grass e, mesmo que só de memória, ainda bem que não encontramos um denominador comum sobre a decadência e a morte. Que ela vem é algo que soa como única verdade e nas linhas escritas por Paul Auster encontramos, confortavelmente, o sublime e, por paradoxal que possa parecer, a alegria de viver. De ter estado aqui connosco, mesmo com os dissabores e contrariedades que obriga a qualquer vida. E não é só a vida despida dos outros. É a que é igualmente preenchida pela vertente social e política, aquela que vale a pena ser vivida. Não deixamos de sublinhar o novaiorquino desiludido com o movimento MAGA que vai levar Trump ao poder e que, talvez felizmente, a morte o poupou de ver. Paul Auster, chama-o de «Ubu», analisando o seu primeiro mandato. Travei a minha leitura quando ele o designou assim: gostei demasiado do Ubu de Jarry, o único rei que me obrigaria a ser monárquico, para aceitar a comparação a Trump, mas acabei por concordar porque esta veio de Paul Auster e creio mesmo que os primeiros decretos de Trump se assemelham aos ubuescos decretos do seu primeiro reinado. O maior problema é que não nos rimos. Mas afastamo-nos (ou não) do cerne deste livro notável. Fixei-me em notas de rodapé. Não tendo sido os únicos, longe disso, deixo-vos com dois trechos de Baumgartner dos que mais me impressionaram:
«Para começar, conclui que chegou o momento de se reformar. Retirar-se-á das funções docentes ativas e assumirá a posição venerável, ainda que insignificante, de professor emérito, deixando o seu lugar no departamento para sangue novo na geração seguinte. Entregar-se-á ao descanso, mas não ao exílio permanente, uma vez que lhe será dada a possibilidade de manter a ligação à universidade, com todos os privilégios de acesso à biblioteca e o direito de continuar a usar o seu endereço de email de Princeton. As suas muitas amizades com colegas de vários departamentos manter-se-ão como dantes, e continuará a assistir a conferências, debates e reuniões informais se e quando o espírito lho pedir, mas todos os aspectos penosos da sua profissão desaparecerão repentina e felizmente: acabam-se as insuportáveis reuniões de comité, as barganhas com alunos insatisfeitos com as notas, as tretas burocráticas. Por outras palavras, uma vida independente, livre - com um rendimento mensal da reforma que será praticamente igual, se não ligeiramente superior, ao do ordenado que ganhava quando estava no ativo. Um novo livro vem tomando forma dentro da sua cabeça nos últimos meses, um projeto estranho, excêntrico, que é diferente de tudo quanto experimentou até agora, um discurso sério-cómico, quase ficcional, sobre o eu em relação com os outros eus, chamo Os Mistérios do Volante, e quer dedicar-lhe o máximo de tempo possível, porque agora o tempo é essencial, e não faz ideia de quanto lhe resta. (...)» (pág.114).
O acesso a uma biblioteca, o fim das reuniões insuportáveis, o tempo livre, o que lhe resta. E este:
«Não há nada a fazer, pensa, absolutamente nada. A perda de memória de curto prazo é uma parte inevitável do envelhecimento, e, se não for esquecermo-nos de correr o fecho das calças é percorrermos a casa à procura dos óculos com os óculos na mão, ou descermos o rés do chão para cumprir duas pequenas tarefas, ir à sala de estar buscar um livro e à cozinha encher um copo de sumo, e regressar ao primeiro andar com o livro mas sem o sumo, ou com o sumo mas sem o livro, ou sem um nem o outro porque houve alguma coisa no rés do chão que nos distraiu e voltámos para cima de mãos a abanar, esquecidos da razão que nos havia levado ao andar de baixo. (...)» (pág.184)
A isto, antes, chamava-se senilidade, agora chama-se demência. Para qualquer dos efeitos ainda estaremos todos longe, até porque quando vier não daremos por isso.
Um livro notável, que termina de uma forma abrupta, desconcertante, inesperada.
Este, é para ter na estante.