segunda-feira, fevereiro 10, 2025

«Sonechka», Ludmila Ulitskaya

Cavalo de Ferro, 2022. (Não segue o AO90). Tradução de Larissa Shotropa
Capacidade de síntese notável, mas pouco entusiasmante como leitura. Anos a fio da vida de uma família russa durante o regime soviético e principalmente de uma mulher, Sonechka, bibliotecária que amava os livros mas que as circunstâncias fizeram dela apenas uma submissa dona de casa. Culpados? Subentende-se que a URSS. 

«Durante vinte anos, dos sete aos vinte e sete, Sonechka leu sem parar. Quando lia, entrava num estado de transe, que terminava com a última página do livro.
Tinha um talento excepcional para a leitura e, talvez, até uma espécie de génio. A sua sensibilidade para a palavra escrita era tão grande que as personagens inventadas estavam em pé de igualdade com as pessoas de carne e osso, que lhe eram próximas. Para ela, o sofrimento sereno de Natasha Rostova à cabeceira do moribundo conde Andrei era tão autêntico como a dor lancinante da sua irmã mais velha, que perdera a filha de quatro anos por um descuido estúpido: tendo ficado na tagarelice com a vizinha, não reparou que a filha, de olhos lentos, gorducha e desajeitada, se deixara cair para dentro do poço.» 
Esta comparação entre a morte do Conde Andrei e da dor de Natasha no «Guerra e Paz», de Tolstoi, com a infeliz queda num poço de uma criança é, sem dúvida, uma das muitas comparações completamente forçadas que vemos em Sonechka, talvez igual à profusão de adjectivos, metáforas e alegorias. A síntese, também ela forçada, assim o obriga.

Hoje é fácil, muito fácil, dizer-se anticomunista. Nascida em 1943, bióloga de formação, Ludmila Ulitskaya, mostra-se claramente hostil ao regime nascido da situação revolucionária de 1917 e que desembocou em Estaline e Krutchev, o que até lhe poderá ter dado benefícios e, pelos vistos, apareceram subitamente com traduções em 40 línguas e vários prémios internacionais. Mas ser-se anticomunista obriga igualmente a um rigor e seriedade que Ulitskaya não exibe, por muito que chame a Lenine «careca do pensamento» (sic). Não faço a mínima ideia do que fala a autora quando assim o nomeia, mas aceita-se o facto de Lenine ser careca (!?). Partindo do facto que o comunismo nunca existiu como regime instituído, antes como experiências muitas vezes afogadas em sangue, ser-se anticomunista é o mesmo que dizer-se anti-utópico, anti-distópico ou anti-mudanças climáticas, ou ainda anti-carros elétricos ou a gasolina, por exemplo. Terá sentido? Para alguns terá, que sei eu...

De qualquer modo, há questões da tradução directa do russo que me fazem interrogar do seu sentido: dizer-se «pomo-de-adão» será o mesmo de «maçã-de-adão»? Nunca ouvi «pomo-de-adão», tal como «arte depravada» que deverá ser a «arte degenerada» aplicada à que foi perseguida por Hitler e não pelo regime soviético, que optou pelo «formalismo jadnovista» contra o expressionismo, surrealismo ou dadaísmo e que não pode ser aplicado para a URSS. «Arte depravada» é a do Cabrita Reis e da Joana Vasconcelos, cá no Ocidente... mas estamos, sem dúvida, na presença de uma «carreira fulgurante», desde 1995. Este foi o primeiro livro de Ludmila.