terça-feira, fevereiro 27, 2024

«O Homem do Castelo Alto», de Philip K. Dick

 

Saída de Emergência, 2015, tradução de David Soares
Obra de Philip K. Dick que coloca o mundo nas mãos dos nazis e das forças do Eixo vencedores da II Guerra Mundial que findou em 1947. A acção passa-se na década de 60 do século XX nos Estados Pacíficos da América (EPA), antigos EUA, divididos a leste pelos alemães e a oeste pelos japoneses. A Europa está sob o domínio nazi comandados por Martin Bormann que sucedeu à morte (calma) de Hitler. Quando aquele, por sua vez, falece, acontece uma verdadeira orgia palaciana de sangue e fogo entre Goebbels e Heydrich. O melhor e mais forte vencerá, seguindo a comédia nazi. Não saberemos quem ganhou, mas esta narrativa não é para aqui chamada. É somente um pormenor num livro interessante que levou Philip K. Dick a elaborar uma ucronia que nos leva, necessariamente, a pensar o que o mundo seria sob a égide totalitária do fascismo. Não estamos perante uma obra literária de excelência. Creio que não era isso que movia o autor que escreveu quase um romance por ano durante a sua vida que terminou em 1982. Estaria mais interessado na mensagem e no conteúdo das suas obras que realizar qualquer arremedo novelístico inigualável. E conseguiu transmitir uma mensagem política clara na base da ucronia no exercício da hipótese do «se...» em História. E se o Eixo ganhasse a II Guerra? Não é uma distopia, embora se o escrevesse no futuro, «O Homem do Castelo Alto» tornar-se-ia numa, certamente. Ao colocar a história no passado, a trama ganha novos contornos, claramente ucrónica. E sabe, como poucos em ficção científica, apresentar «nuances» políticas entre os dominadores. O Japão vencedor que se assenhoreia do oeste dos EPA odeia a Alemanha e a sua política de extinção de judeus e a brutalidade policial que continua após a guerra, mantendo campos de extermínio quer na Europa, quer no antigo território americano. Os europeus não germânicos são considerados inferiores e fazem os trabalhos considerados menores que os alemães não querem e África é um continente cuja população está a ser extinta, ninguém sabe como e não há informação sobre isso. Apenas se sabe que está a ser extinta por Heydrich e isso basta para um mundo dominado e economicamente em crescimento contínuo. Viver todos os dias é quase uma vitória para uma população que caminha para a alienação total através da televisão. O homem do castelo alto é, no fundo, um líder de uma oposição intelectual, que embora se oponha ao totalitarismo não vê, ou não quer ver, que mais tarde ou mais cedo será igualmente eliminada. 

Uma palavra para esta edição que é complementada por um «ensaio» de Nuno Rogeiro de longas páginas que quase nos obriga a dizer que este é um livro dele, com um romance de Philip K. Dick! À viva força o autor do ensaio quer ver no escritor americano um membro místico de extrema-direita, quando nada no romance nos guia para essa conclusão e claramente negado pela sua vida que sempre alinhou pela esquerda americana, quer nos anos 50 com perseguição do FBI, quer nos anos 60 contra a guerra do Vietname alinhando com os estudantes de Berkeley e com a intelectualidade da esquerda dos EUA. Como comprova a sua amizade com a anarquista Ursula K. Le Guin. Se chegou a ser membro do PC dos EUA nos anos 50 não há certeza, mas o «democrata» FBI nunca o incomodaria se não houvesse indícios disso mesmo. No entanto, a partir de 1974, com um abuso de drogas alucinogénias mais intensificado, envereda por um misticismo cristão primitivo que o leva a atitudes paranóicas acabando por se tornar um anticomunista militante, o que não faz desta obra, «O Homem do Castelo Alto», um livro de extrema-direita! Daí, não se entender por que razão Nuno Rogeiro foi chamado pela editora para escrever o tal «ensaio» verdadeiramente lamentável sobre Philip K. Dick.