quinta-feira, outubro 14, 2021

A desgraça de uma série na RTP2: Trotsky!

 

A série que neste momento passa na RTP2 sobre Trotsky tem o condão de desgraçar tudo em que toca. Por mim, estou mais ou menos de consciência tranquila: a seu devido tempo alertei para a carga ideológica que estava por detrás destas séries ditas de «qualidade» que endeusavam as famílias de capitais assegurados por heranças, como os Faber-Castell, os Burda, os Piaggio, os Ferrari, os...etc, etc., mas eis que surge Trotsky pela mão russa. Além da indigência da representação, desgraça logicamente a figura de Trotsky e chefe do Exército Vermelho como é o objectivo da série. Honra lhe seja feita, não o esconde. O homem é um assassino nato, um obcecado pela violência, um ambicioso sem escrúpulos, um disciplinador, mas igualmente um oportunista. A série desgraça Lenine, que sem bigode e pêra tem parecenças com Putin, homem de voz fria e sibilina, que suspende Trotsky num telhado pronto a esbarrondar-se cá em baixo se este não lhe obedecer! A série desgraça os social-democratas, a série desgraça Estaline que pobre diabo assalta carrinhas cheias de dinheiro não se sabe para quem, mas que se sabe não gostar de Trotsky porque este não o cumprimentou! Balha-me deus! A série desgraça a Revolução. A série desgraça o povo russo que é maltratado pelos revolucionários que dizem que o amam, mas que afinal o desprezam, e aceitam esse conluio como cordeiros que vão para o sacrifício final. A série desgraça a burguesia russa cocaínómana e só. A série desgraça os bolcheviques. A série desgraça as Internacionais. A série desgraça o cinema. A série é uma verdadeira bosta à medida de Putin! A série desgraça Freud com um suposto diálogo entre o psicanalista e o bolchevique completamente pueril, ridículo, inverosímil...«a revolução é desejo sexual», coisa em que concorda Trotsky, mas o psicanalista nota a contracção das suas pupilas quando este foi contrariado: ou seja, um assassino em série!! Por outro lado, Natalia Sverdovla, a mulher de Trotsky acha que, na primeira vez, ele foi rude com ela (estavam num comboio em andamento). Ele responde afoito: «a rudeza é necessária, quando queremos os outros felizes!». Vão à merda! Basta!

segunda-feira, outubro 11, 2021

Penúltimo Outono (3)

Estava cada vez pior. A vida, eu e a carestia. Marcelo apresentava um ricto estranho de desdém na televisão e eu também. Não tinha a boca ao lado, como ele, mas empenhava-me num sobrolho carregado e um esgar fatídico, daqueles que dão tudo para um único objectivo: ao contrário dele, a queda do fascismo. Este facilitava-nos a vida porque não dialogava com ninguém e a guerra continuava nas três frentes da porra africana em que o D. Henrique nos meteu 500 anos antes. Agora morríamos como tordos e perfilava-se a coragem derradeira pela pátria: a fuga para a frente, ou seja, literalmente e depressa para os Pirinéus! Claro que havia histórias horripilantes de gajos enregelados nos Picos da Europa e coisa e tal, alguns presos pela Guardia Civil, entregues à pide e lavados para Penamacor como desertores acompanhados de castigos terríveis em que os obrigavam a subir colinas com pipas de água às costas. Aliás, meio-cheios porque o balanço da carga forçava-os até ao limite da resistência humana. A porrada da pide naqueles tempos já não metia medo a ninguém. Agora era fugir porque já tinha 17 anos e em Novembro daria o meu nome na Junta de Freguesia da Sé Nova e o DRM chamava-me como ginjas. Vais para a tropa, que aqui é que se faz um homem, caraças. Ou queres ser maricas? Não me lembro o que respondia a estas invectivas filosóficas de alto coturno, mas não, não queria ser maricas, mas ser homem ao ponto de levar um tiro na testa, ou ficar ceguinho, ou sem uma perna, talvez o maricas fosse uma opção a considerar, já que os não queriam no exército, a bem dizer. Já na marinha e segundo um poema que eu tinha lido de Cesariny este axioma não era tão provável de ser demonstrado! (...)

segunda-feira, outubro 04, 2021

Penúltimo Outono (2)

Estava determinado. Não sei bem em quê, mas estava determinado. Na Clepsidra encontrava-me com os meus companheiros de luta, os imprescindíveis de que falava Brecht. Tínhamos tarefas no andar de cima que subíamos seriíssimos para ir para o policopiador e abrir o stencil azul, mais a tinta preta necessária e as resmas de papel branco, por vezes azul. Assinávamos como Cpael, acrónimo difícil de verbalizar, mas éramos já conhecidos pela malta do liceu. E provavelmente de outros liceus, porque alguns companheiros menos auspiciosos dos futuros radiosos pediam-nos para irmos lá nós que já estávamos mais «queimados» do que eles, virgens sedutoras da mole liceal por esclarecer gajo por gajo. Para isso estavam lá eles. Cheirou-nos a cobardia, mas as coisas são o que são e a mente humana já nos estava dissecada pelas leituras de Tolstoi, Dostoievsky, Roger Vailland, Aragon, Cholokov e o grande Gorki! Nada de novo, portanto. Tínhamos era de ter cuidado com as unhas. O negro da tinta do stencil entranhado nas unhas podia deitar tudo a perder e a pide sabia abrir-nos as mãos. Havia uma escala: unhas pretas significavam elaboração de stencil e comunicados, coisa não tão grave; já as pontas dos dedos, unhas e palma das mãos pretas era mais grave e significava sem dúvida pichagens nas paredes. (...)

 


domingo, outubro 03, 2021

Sobre o autor (eu mesmo) de «Abjectos Surreais»

 


Sobre o autor: vive agora em Coimbra, retornado há somente quatro anos. Tendo nascido na Sé Nova, na Arregaça, onze anos depois do fim dos campos de concentração e cuja proximidade cronológica com o extermínio em massa nazi o deixa, ainda, perplexo. Nessa altura, os carros eram quase todos pretos, os caixotes de lixo eram de alumínio e tinham o nome familiar de «Jacós». Aprendeu a ler, a escrever e não tanto a contar. Nunca esteve muito tempo no mesmo lugar, acreditando ser um nómada algo frustrado. Foi sedentário no Porto durante quase vinte anos, não abandonando igualmente a frustração inerente a essa condição. Fundou e desligou a luz da Deriva Editores após quinze anos e muitos livros editados. Expôs, em 2018, também no Liquidâmbar, «Anjos do Desespero» desenhos onde pontificavam os mensageiros da destruição e do amor entre poetas luminosos, filósofos obscuros e terroristas dos anos de chumbo.  Consegue alguma paz de espírito desenhando e escrevendo; contudo, uma inquietação fininha acalenta-lhe esperanças, provavelmente vãs, de que venha a ser um pessimista cínico, coisa que não consegue por mais que tente. Hoje, com «Abjectos Surreais» tenta levantar a poeira nas estradas da subversão, do desejo e da plenitude reparando, tarde demais, que as estradas e as ruas foram, entretanto, cobertas com alcatrão.

Contacto para aquisição de quadros: abjectossurreais@gmail.com



A base da apresentação que antes de tudo seria um anúncio, mas nem tanto assim foi


Antes que tudo, um anúncio (lido no Liquidâmbar a 1 de Outubro de 2021)

Não se deve misturar surrealismo com academismo. Se o fizerem, o efeito imediato da cicuta é o menos mau se comparado com a lástima que será a infusão de arsénico num qualquer chá. O surrealismo foi um meu companheiro de longos anos passados em cafés, em bares, em sítios improváveis, tomados com estricnina, fumado a eito e partilhado verso a verso, imagem a imagem em janelas e vitrines chuvosas ou em verões escaldantes debaixo de figueiras e carvalhos ou, se não atreitos ao bucolismo (nada tinha de), em esplanadas ventosas com os pés ao alto para não nos enterrarmos em alcatrão quente. Esse enterro veio mais tarde, já não em pez, mas em lama algo lodosa.

Aí, nesses lugares probabilíssimos onde vivi com desespero feliz aninhava-me nas margens de rios dourados das fontes de Bagdade, alimentados por chuvas ácidas azuis de Berlim, por espremidas laranjas Vietname, onde peixes-voadores vinham sorver o oxigénio líquido dos hospitais, os salmões subiam pelas nossas coxas e nas paredes das galerias de arte, os cavalos loucos e ciosos galgavam as margens das estepes entre cães desamparados e gatos de olhos rutilantes de ódio cismático. Assim era o surrealismo sentido por mim. Em busca de derivas cadentes e incandescentes de desejo, esquadrinhava as lentes das cidades nocturnas fugindo ao dia que me dilacerava, adorando o sol e a morte que emanava. Os dias passavam-se na cadência de uma camioneta lenta, de um comboio de apeadeiros vazios e de boleias inúteis. As folhas contavam-se pelos livros que guardava e em algumas sentia com prazer estupendo os caracteres de tipos rugosos. 

Lido Helder e Cesariny, Pacheco e Oom, encontrava-os e encontrava-me em sigilo e cumplicidade. Surrealistas? Alguns nem tanto. Atravessavam-lhes o abjeccionismo. Surrealistas que não desejavam sê-lo. Abjeccionistas que não pretendiam a abjecção pela abjecção. Neo-realistas arrependidos, outros arreigados às comunidades. Os rótulos literários passaram-se para a reforma agrária e para os apartamentos citadinos. As armas eram reclamadas pelo Mário-Henrique Leiria. Nunca as usou, porque preocupado com o cão, presumo. Pouco me importaram estas tentativas de branqueamento capital ou de personagem. Continuava a lê-los como último recurso para uma vida que se queria vivida rápida e ferozmente, sem compromissos. Abandonei Deus? É possível, enquanto descobria outros enviados pelo surrealismo da casa, ainda assim próximo do cânone bretoniano, o tal papa laico. Sagir ou a deusa-mãe, Ísis e Osíris e a Metaciência de António Maria Lisboa, Milarepa de Lapa, Varuna de Manuel de Castro, Eros de Dacosta ou os deuses animistas de Seixas. Ter-lhes-iam sido fiéis estes deuses, estranhamente subsumidos nos seus pensamentos, nas palavras que diziam não serem sequer necessárias para ser Poeta? Seria mesmo verosímil a sua busca pelas forças do Caos em luta milenar contra os céus de mel e prazeres infinitos? A chamada dos deuses fez-se em vida destas personagens terrenas com Baal em luta contra Enkil, Varuna observando e incitando a desordem para convocar os deuses da ordem e do bem. Ter-se-ão dado conta da luta interior convocada por eles? O perigo iminente que os rondava?

Mais do que construírem as palavras e as imagens sob a batuta ortodoxa da metodologia automatista criaram a possibilidade de edificarem a República de Crianças, aquela que constitui o verdadeiro palco da crueldade, do amor, da verdade e dos jogos de guerra permanentes. Uma entidade indígena que não foi preservada pelos arqueólogos literários do costume, envoltos em cartografias manhosas, criadores de pequenas correntes de ar de que falava Helder, mas sim pela escolha límpida e cúmplice da auto-dissolução, pela vontade plenamente livre dos seus protagonistas.

Todos tiveram vidas trágicas, no sentido mais profundo da tragédia grega. Uma fusão de Diónisos com Afrodite e Eros, os deuses imoladores que menos mentiam e mais sentiam. E a maior parte deles pagaram com a existência em limite constante o desejo violento de uma outra vida. Esta terra não era para eles; demasiado mesquinha, feita de pides e informadores, magalas e marialvas, mulheres escravas e que gostavam de o ser, povo medroso, supersticioso e ritualista que fugia do comunismo e da democracia. Que idolatrava a pobreza e a castidade. Que poderia o poeta ser muito mais do que morrer abjectando tudo e todos? António Maria Lisboa, Manuel de Castro, Manuel de Lima, Pedro Oom, Mário-Henrique Leiria, António José Forte não morreram demasiado cedo. Pura e simplesmente não desapareceram porque não lhes deu para se prostrarem de deferência perante os vivos. Tentaram Paris e Londres, exigiam liberdade que cá não tinham e alguns acabaram a pedir sandes em Montparnasse para não morrer de fome, outros em minas de carvão na Checoslováquia, em navios de cruzeiro ou mercantes, outros adoeceram, enlouqueceram, empregaram-se e remeteram-se ao silêncio ou, pior, saíram de si próprios e não voltaram mais.

Acabado o Prec, a fase mais poética e insurrecional de que o povo português foi capaz (em muito esforço) nos meados do século XX, lá para 77, o surrealismo tornou-se-me mais distante. A provocação e a destruição de uma ordem fascista e abjecta deixou de existir e o sangue parou de correr na saudosa África. Disse o que queria dizer: abjecta. E, já muito antes, dei conta da dicotomia surrealismo/abjeccionismo tão caro aos debates áridos das academias que dizem desprezar trocadilhos nas palavras. Hoje o academismo «estuda», pomposo, o surrealismo rebaixando-o a «movimento» a «grupo» que os próprios rejeitaram.

Portanto, desde 1949, e para quem conhece a história surrealista, deparamos já com dissoluções e combates intestinos. A coisa assim foi até declararem, pela honestidade e frontalidade brutais que lhes são reconhecidas, que não haveria nenhum grupo surrealista, mas sim um conjunto de surrealistas que embora de iniciativas individuais os ligavam um fio de revolta e subversão, iniciado por manifestos comuns na década de 40 e 50.

Seja como for, devo-lhes a vida. Devo-lhes a palavra, a textura, a cor e o som. Apontaram-me as armas mais perigosas: as da subversão pelo amor e pela destruição. Não levantei os braços em rendição. Dispararam. Hoje, acertámos contas. Estamos pagos.

 António Luís Catarino

Coimbra, 19 de Setembro de 2021


A Fotoreportagem da apresentação de «Abjectos Surreais». Fotos de Paulo Góis

 













As fotos são da autoria de Paulo Góis e o cartaz que se vê acima é de Ana Catarino

paulocostagois@gmail.com

Eu sei que não precisam nada disto, mas agradeço a presença de Ananda, Cristina Bertrand, Maria João, Isaura, Alzira, Abraão, António Alves Martins, Anabela, Anabela Santos, Margarida, Cristina, Paulo Góis, Arlete e todos aqueles que nos dias seguintes foram dar um salto à exposição de 14 desenhos e tiveram a paciência de me ouvir. Que foi divertido, lá isso foi. O catálogo, cuja capa foi votada democraticamente seguirá dentro de momentos para a tipografia!