terça-feira, dezembro 22, 2020

«A Ladra da Fruta», de Peter Handke

Relógio D'Água, 2020, Tradução de Helena Topa

Já me tem acontecido na leitura de um livro, mas as primeiras palavras desta ficha de leitura vão, directas, para o trabalho de Helena Topa nesta tradução de «A Ladra da Fruta», de Peter Handke. É um trabalho excepcional e não queria (nem poderia) estar na sua pele a traduzir do alemão palavras, expressões, referências literárias inesperadas mas ganhando todo o sentido ao serem explicadas no final do livro por Helena Topa. Palavras e frases que o próprio Handke afirma, no decorrer da história, serem intraduzíveis alternando com expressões em alemão (a certa altura até faz um elogio à sua língua que, cá por mim, até corroboraria se não fossem as palavras de 23 letras!), francês e espanhol. Nada que não se esperasse de um livro da Relógio d'Água, mas este trabalho de tradução é mesmo de registar.

Quanto ao livro em si, lê-se de um fôlego. Não tendo capítulos ou espaços em branco para respirarmos, a cadência que nos transmite faz a leitura discorrer sem grandes problemas de fadiga. O facto estará, creio, no acompanhamento que queremos fazer com Alexia, mais tarde também com Valter, cuja viagem em espiral dura três dias. O motivo aparente, se é que é necessário um motivo, é uma caminhada pelas estradas, bosques, rios, na Picardia francesa em busca da mãe e de um irmão que não vê há muito. Alexia é siberiana e viaja em diversas situações quase surrealistas se não tivéssemos a certeza que a realidade ultrapassa em muito a ficção, tornando a deriva de Alexia verosímil. 

Utilizei o termo «deriva» porque é mesmo o que acontece nesta viagem. Se isto não é uma deriva, então o que é a busca de Alexia? Se atentarmos em Thomas de Quincey que afirmava em «Confissões de um Opiómano inglês» que Londres era uma cidade onde existiam quadrículas desconhecidas ou mapas não registados oficialmente pela polícia, onde se errava em liberdade e perigosamente, então temos uma Alexia em deriva constante. Se quisermos até chamar a psicogeografia, teremos igualmente uma Alexia em busca permanente de uma identidade e de um lugar onde se identifique com ela própria. Por isso move-se em espiral, como nos informa Handke. Porque se encontra com lugares, pessoas e animais que lhe dizem quem é, mas que ela abandona de seguida - em espiral, para nunca se repetir o encontro, tal como a História, em Mircea Eliade. Esta nunca se repete se bem que os lugares-comuns, muitos deles assinalados pelo autor na obra, o repitam até ao enjoo. Não, a História não se repete. Toca-se em espiral, num movimento helicoidal, como as molas dos nossos automóveis. 

E, se para esta obra excepcional, fosse necessário mostrar um epílogo, de tantos que tem, visto que a deriva de Alexia, tal como qualquer deriva, não tem fim, eu escolheria este discurso do pai:« «Nós, os que não temos Estado, aqui e hoje livres do Estado, inatingíveis pelo Estado. Tudo se converteu em seitas, Estados e Igrejas e...e...E nós? Fugitivos do tempo, heróis da fuga. Nós, que não temos um papel, enquanto os homens do Estado continuam, imperturbáveis, nos seus papéis. Nós, os eternos destemidos cheios de temor. Os eternos hesitantes e procrastinadores. Os que escolhemos os desvios. Os que andamos em círculos e espirais. Os-que-olhamos-por-cima-do-ombro para o vazio. Os herdeiros da culpa. Os amantes do amargo. Nós, os prestáveis, dinastia de serviçais, nobreza hereditária de obsequiosos. Nós, os rotos, marquesas e condes hereditários ''von Roto''. Nós, as figuras marginais! (Exclamação: «Viva o roto! Vivam as figuras marginais!») «Nós, os ilegais e os desesperados. Que temos, contudo, uma lei. Nós, os lutadores de causas perdidas.» (Exclamação: «Vida longa aos que lutam por causas perdidas!»).»»

Sois dados a serem prestáveis, pertencerem a uma dinastia de serviçais ou, ainda, eternos obsequiosos? Então não leiam este livro. Mas sereis agradavelmente surpreendidos se forem permanentes lutadores de causas perdidas.

António Luís Catarino. 

22 de Dezembro de 2020