domingo, novembro 15, 2020

«A Mulher como campo de batalha», de Matéi Visniec. Encenação de Sofia Lobo. Escola da Noite

 


                                                                 A Mulher como campo de batalha, de Matéi Visniec. 
                                                                         Encenação de Sofia Lobo. Escola da Noite

É evidente que saímos incomodados. Mas quem quer teatros levezinhos vá a outro lado. Este espectáculo encenado por Sofia Lobo constitui a 70ª sessão de teatro da Escola da Noite o que não deixa de ser significativo numa cidade cuja maioria dos habitantes são culturalmente neutros (o que é pior do que serem incultos). Mas depois dos parabéns vem o tal murro no estômago apontado com mestria pela encenadora e por uma dupla de excelentes actrizes que deixo aqui os seus nomes: Ana Teresa Santos (Dorra) e Paula Garcia (Kate).

Os figurinos, adereços e imagem gráfica é de Ana Rosa Assunção que teve um trabalho importantíssimo na atmosfera fria de um hospital e ao mesmo tempo violentamente intimista com que seguimos a narrativa.

Sofia Lobo e Ana Teresa Santos traduziram a obra do romeno Matéi Visniec que não conhecia. Aliás, creio que li uma obra dele, depois de olhar para a folha de sala deste espectáculo. Se não me engano veio ter-me às mãos, há muito, «Cuidado com as velhinhas carentes e solitárias» de 2003, que um amigo ligado ao teatro tentou encenar em Leiria. Não creio que alguma vez tivesse sido apresentado.

E chegamos ao texto em si. Nascido em 1956, um rapaz da minha idade portanto, cursou Filosofia na Roménia de Ceausescu o que equivale a estudar a influência dos pinguins nos desertos do Saara! É evidente que se exilou porque assim teve de ser, não fosse o grande Conductor ver nas múltiplas personagens do autor, uma imagem dele próprio. Cremos todos que o seu objetivo foi o de seguir o seu rumo, já que se tornou uma figura incontornável da dramaturgia mundial. A Escola da Noite e a Sofia Lobo escolheram bem.

Fotografia de Eduardo Pinto

                                                                 Fotografia de Eduardo Pinto

Cito de cor: «A Europa é um monte de pedras», «Tem tantas que um dia se afundará com o seu peso», «A Irlanda? Um monte de pedras!», «Os Estados Unidos? Pedras, pelo que me tornei pedreiro, quando emigrei para lá». Estas frases de uma personagem que não está fisicamente na peça são ditas pelo avô, de ascendência irlandesa, de Kate uma psicóloga que acompanha os que levantam centenas e centenas (milhares?) de valas comuns nos Balcãs. E quem cuidará depois dela? Compreendi que aquelas pedras são uma metáfora dos seres humanos. E então poderemos concluir que as pedras não existem somente naquela península. Aliás, o abjecto, o horror e a violência demente que são as violações em massa nos Balcãs, não residem só nos Balcãs. A mulher torna-se então um campo aberto de batalha. Porque através dela se pode abater mentalmente o soldado da frente. É uma guerra de rectaguarda. Como todas, cobarde e terrível pelo que tem de sórdido. Mas da batalha dos múltiplos nacionalismos! E, por favor, não me venham com o duplo adjectivo do «nacionalismo exacerbado». Digam só «nacionalismo». Basta para desencadear horrores e atitudes demenciais, inumanas, quase que diria, simiescas, se não estivéssemos a insultar os nossos primos. O diálogo entre dois «homens» balcânicos que são imitados por Ana Teresa e Paula podemos ouvi-los em qualquer café de Lisboa, Coimbra ou Vila Nova de Tázem: os «mas» eternos com que se generaliza um povo constitui o nacionalismo seja ele «exacerbado», «radical» ou «soft». Isso não existe. Existe o nacionalismo, tout court, antecâmara do fascismo: «Os judeus? Tenho amigos judeus. Até são cultos…mas, puderam-se a jeito na Alemanha!», «Os ciganos? Cantam e dançam bem…mas, por vezes, são dados ao roubo!», «Romenos? Gente boa, alegre, mas preguiçosos e têm a mania que não são eslavos!». E continua…digam-me se já não ouviram isto vezes demais.

É Matéi Visniec que diz: «Nas guerras interétnicas, o sexo da mulher torna-se um campo de batalha. Vimo-lo na Europa, no final do século XX. O pénis do novo guerreiro mergulha no grito das mulheres violadas como outrora a espada do cavaleiro no sangue do seu adversário.»

É Kate, americana de origem irlandesa que afirma: «A Europa já se afundou com o peso das pedras!» Saímos daquela peça com a sensação nítida do que já suspeitávamos: como poderá a Europa redimir-se destes crimes, destas chagas deixadas nos Balcãs, que retomou a lógica horrível das primeiras e segundas guerras mundiais? Não pode. Não podemos. Isto terá de viver connosco e extirpar essa memória colectiva vem até aos confins da nossa mente, mesmo daqueles que nada tiveram a ver com a ignomínia das guerras. Ou pensam estar muito longe…

E a gravidez de Dorra, fruto de uma violação colectiva, mostra-nos como o tal murro no estômago de que falava atrás, pode originar um encadeamento de memórias do espectador atento: que culpa? Quem são os culpados? Como Hanna Arendt nos mostrou no julgamento de Eichmann, os soldados estavam somente a cumprir ordens, eram administrativa e sexualmente competentes, para além de saberem matar muito. Os mandantes defendiam a entidade nação e alguns, como lembra Kate, eram até poetas firmados, como o psiquiatra Karadzic.

«Chorar por quem?» questiona Sofia Lobo. «Entre vinte a cinquenta mil mulheres foram violadas nesta guerra (…). Muitas foram obrigadas a parir crianças que não desejaram, para aumentarem o peso demográfico da etnia dos seus agressores, porque, sabemo-lo, na maior parte das sociedades e das culturas quem conta é o pai. Muitas das sobreviventes rejeitaram os filhos que tiveram, abandonaram-nos, deram-nos para adoção. As que os mantiveram inventaram-lhes pais, porque a intimidade violada gera vergonha, medo, silêncio. Só passados cerca de vinte e cinco anos, alguns destes jovens têm a coragem de enfrentar a sua estranha identidade para, ao darem a cara, serem a prova do que aconteceu em território europeu há pouco mais de duas décadas.» …ou o mar de pedras que cobrem as memórias das guerras europeias, os genocídios e os massacres. Pedras, daquelas que não deixam crescer as sementes e, outras, as pedras tumulares. Pedras humanas que são vítimas e perpetradores. Pedras.

Mas há, no mesmo texto da encenadora, uma afirmação que não posso deixar de divulgar aqui nesta nota de leitura. É quando Sofia Lobo lembra a nota esperançosa com que Visniec termina a peça, porque segundo o dramaturgo há que acreditar na humanidade e em que as pessoas poderão ser felizes. «Eu tenho mais dúvidas», diz Sofia. Eu, pessoalmente, também partilho esta ideia. Entre fascismos assumidos e em evolução, entre refugiados tratados como inumanos, migrantes perseguidos e confinados, campos de concentração modernos em que separam pais de filhos, muros nacionalistas, metáfora exacta da loucura confinada e aceite pelos confinados, o racismo, a xenofobia, o assassínio selectivo e diário de mulheres, a misoginia, ou o estado de guerra permanente que se multiplica, como cogumelos, pelo mundo, há pouco espaço para termos uma ínfima esperança na humanidade. Esta desesperança tem vindo a estacionar nos nossos pensamentos à espera de um erro, de um simples erro que nos leve a deixar a luta contínua em que a vida se tornou.

Esta peça excelente e incómoda que nos atordoa, portanto eficaz nos seus propósitos, não pode ser ignorada sob pena de perecermos todos sob o manto do fascismo.

António Luís Catarino

Coimbra, 15 de Novembro de 2020